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Plinio Corrêa de Oliveira
Artigos na "Folha de S. Paulo"
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Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias |
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Estátua de Santo Estêvão, em Budapest De qualquer forma, naquele remoto ano 1000, a Igreja tinha a felicidade de ser governada por um grande papa: Silvestre II. Seus desvelos pastorais — oh, quão autênticos! — cobriam todo o mundo civilizado e perscrutavam o mundo bárbaro, à procura de almas para converter. Assim, divisou ele, no seio daquele povo bárbaro, uma verdadeira flor surgida das noites da barbaria. Era o jovem Duque Estevão, que pedia à Igreja, para si o título de rei, e para sua terra — a Hungria, há pouco convertida — a graça da instituição de uma Hierarquia eclesiástica. Silvestre II mandou para as margens do Danúbio, com sua paternal aquiescência, uma obra-prima como melhor não a poderia fazer a ourivesaria do tempo. Era uma coroa régia em que, encastoadas no ouro, refulgiam pérolas e pedras preciosas de várias cores. O jovem rei cingiu a coroa com o propósito inflexível de realizar as esperanças do Pontífice. E do ano 1000 até nossos dias, nenhum rei da Hungria foi maior do que ele. A Igreja o canonizou. Fixou-lhe uma festa no seu calendário. E de então para cá, nessa festa, em todo orbe se evola, dos corações dos fiéis, a mesma súplica: "Santo Estêvão, rogai por nós". Durante esses mil anos, a coroa de Santo Estêvão foi aceita ininterruptamente, pelo povo húngaro, como símbolo da própria soberania do país. Só era acatado como chefe autêntico deste, quem a possuísse. E isto ficou assim bem exatamente até nossos dias.
Coroa de Santo Estêvão Tudo isto dito, passemos — ou antes, despenquemos — do panorama de iluminura da Hungria de Santo Estêvão, para o panorama de pesadelo da Hungria de Janos Kadar. Santo Estêvão, sob o augusto e paternal influxo de Silvestre II, de um lado. De outro lado, Janos Kadar, teledirigido por Brejnev. Poderia ser mais vertiginosa a queda? Os comunistas do mundo inteiro pretendem que, com a invasão da Hungria pelas tropas soviéticas em fins de 1944, e o estabelecimento do regime comunista ateu no país, o povo foi libertado do jugo de suas estruturas tradicionais. E conheceu, com a verdadeira liberdade — isto é, a do comunismo — a verdadeira luz, isto é, a do ateísmo. De 1945 para cá, o regime comunista húngaro não tem feito senão coarctar a liberdade religiosa, e empregar todas as formas de pressão, psicológicas e policiais, para extirpar do espírito nacional tudo aquilo de que a coroa fora um símbolo. Entretanto, os fatos provam que o esforço dos dominadores vem sendo de fraco rendimento. Assim, o governo húngaro manteve enclausurado, por anos, na embaixada dos Estados Unidos em Budapeste, o cardeal Mindszenty, primaz da Hungria. Este prelado velho, isolado, e sobre o qual se fizera, na terra de Santo Estêvão, o mais pesado silêncio, perturbava o sono dos governantes, entretanto apoiados em todo o poderio de seus canhões, de sua censura e de sua polícia. E não repousou tranqüilo enquanto não conseguiu de Paulo VI que utilizasse a Obediência — única força diante da qual o grande cardeal anticomunista se inclinou — para removê-lo da Hungria. Isso não bastou. O governo comunista conseguiu então, mais uma vez com o apoio da Santa Sé, que todos os bispos húngaros lhe jurassem fidelidade. Era a Hungria de Kadar, ou antes, a pseudo-Hungria de Kadar, a apoiar-se sobre os restos ou as aparências da Hungria de Santo Estêvão, para tentar sobreviver. O último lance dessa política acaba de jogar-se agora. Todos sabem que, em vésperas da ascensão do regime comunista na Hungria, húngaros cujos nomes os jornais não publicam, evitaram que caísse sob as garras do invasor o próprio símbolo da legitimidade de todo o poder na Hungria, isto é, a coroa de Santo Estêvão. Foi ela, assim, confiada a um poder terreno, o maior e mais rico que a História conheceu. Entretanto, continuavam a dormir desassossegados os procônsules de Brejnev em Budapeste. Pois o povo da Hungria se obstinava em não lhes reconhecer o poder a esses adventícios sobre cuja fronte a coroa de Santo Estêvão não brilhava. Como conseguiriam eles com seus canhonetes, meter medo nos supercanhões americanos, para lhes extorquir a relíquia incomparável? Não é certo que Brejnev tenha recebido essa consulta. Se a recebeu, é certo que sorriu. E disse: "Ora, os canhões! Haverá coisa mais velha e mais inútil, nesta época de "détente", de "Ostpolitik", de Carter e de Paulo VI? A lábia facilmente obterá deles as concessões que tanto desejam fazer-nos". E aí estão os fatos. Para ajudar os comunistas húngaros a se manterem no poder, o mais alto potentado da mais poderosa democracia do Ocidente entrega a Kadar a coroa, a relíquia, que fora confiada à nação americana como depósito de honra. Carter manda o secretário de Estado Vance que a entregue, em cerimônia aparatosa, precisamente ao homem que é o contrário do rei evangelizador, ou seja, o déspota materialista. A tal propósito, um porta-voz do Vaticano emitiu um comentário que vale por um sussurro ambíguo, e talvez ligeiramente envergonhado. Mas para demonstrar a todos os húngaros que a Igreja concordava com a entrega da relíquia ao ditador comunista e ateu, estava presente, ao ato da entrega da coroa o cardeal Leckai, arcebispo de Ezstergom. O sucessor — "horresco referens" — do cardeal Mindszenty. Ambos — Vance e Leckai — como a bradar aos húngaros, aos olhos de Deus, do mundo e da História: "A Igreja e o Estados Unidos apoiam que vossas cervizes de batizados, e com elas as vossas glórias de povo soberano e cristão, sejam esmagadas pelos comunistas ateus, procônsules de Moscou". Estamos certos de que incontáveis húngaros, dentro e fora da Hungria, de sua parte replicaram a esse brado, nas lágrimas da indignação: "Santo Estêvão, rogai por nós". No fundo da alma, incontáveis brasileiros — parte dos quais adormecidos pela apatia que vai invadindo os setores mais sadios da opinião — dizem o mesmo. Essa súplica não terá subido ao Céu, em vão. Introduzindo a relíquia na Hungria, Kadar criou uma circunstância preciosa para que seja ainda mais ardente a intercessão de Santo Estêvão por seu povo. Com o auxílio inadvertido de Carter e de Paulo VI, entrou na Hungria a coroa-símbolo, a coroa-relíquia, cuja presença poderá talvez atrair para o país legiões de Anjos, e rios de graças, de modo a que o povo húngaro sacuda o jugo sob o qual jaz. Meu pensamento se volta para os artífices da volta da coroa. E uma frase me vem aos lábios: "Qui habitat in coelis irridebit eos". Deus se rirá deles: di-lo a Escritura (Ps. 2,4). "Irridebit": é bem a palavra! |