"Folha de S. Paulo", 26 de setembro de 1977
Um quitute sobre política
Tenho hoje, para meus leitores, o que qualifico de quitute de primeira ordem. Trata-se de documento inédito, cujo alcance é fácil de avaliar.
No momento em que a voragem política se faz cada vez mais intensa a propósito da questão da institucionalização política, e quando se torna dia a dia mais claro o empenho em levar personalidades ou instituições da Igreja a se pronunciarem sobre a matéria, uma pergunta se põe: até que ponto pode e deve a Igreja tomar posição e entrar na liça?
A tal propósito, conversava eu há pouco com uma das figuras mais ilustres e geralmente conceituadas do episcopado latino-americano, isto é, d. Antônio de Castro Mayer, bispo de Campos.
Elogiávamos, ele e eu, recentes declarações feitas sobre a matéria pelo cardeal d. Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre na "Voz do Pastor" do dia 29 de agosto p.p. em que o Purpurado reiterara na entrevista à "Folha" de 18 de setembro.
A tal propósito, d. Antônio de Castro Mayer me deu conhecimento de um texto luminoso que ele enviara com data de 8 de Junho do corrente ano a d. Geraldo Fernandes, arcebispo de Londrina e vice-presidente da CNBB.
Pareceu-me que não se podia furtar ao público brasileiro o conhecimento desta obra-prima de lucidez, clareza e concisão, versando sobre tema de tanta atualidade. Sim, consegui em favor dos meus leitores da "Folha" que o grande bispo de Campos me autorizasse a publicar nesta coluna o seu trabalho:
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"De tempos a esta parte, vai ganhando intensidade no País o debate sobre a forma de governo vigente: E’ uma democracia, é uma ditadura?
"A questão se complica com outras: o perigo comunista tomou no Brasil gravidade que justifique a aplicação apenas parcial de nossa Constituição? A concessão de inteira liberdade política aos agentes do comunismo põe em risco a estabilidade das instituições? Ou, pelo contrário, o risco consiste, para estas, na repressão, que exacerbaria os ânimos e acirraria as investidas comunistas?
"Por fim, é certo que a repressão se efetua de maneira desumana e contrária ao direito natural?
"Não me proponho a responder aqui o que pessoalmente me pareça certo em cada uma dessas matérias. Pergunto-me, isto sim, até que ponto, como Bispo da Santa Igreja, me toca o direito e o dever de sobre elas me pronunciar.
"Quanto à ultima pergunta, a resposta é óbvia. O comunismo é um erro, e como tal não tem direito à liberdade. Enquanto Bispo, não posso, pois, opor-me à repressão policial do comunismo.
"Em todos os países do Ocidente — falo destes, pois quanto aos de além- cortina de ferro nec nominetur, nessa matéria — as repressões policiais, sejam elas por delitos políticos ou delitos comuns, dão infelizmente ocasião a abusos. A autoridade eclesiástica cumpre seu dever protestando sistematicamente contra estes.
"Para que sua ação seja inteiramente digna de aplauso nesta matéria, é indispensável que tais abusos sejam devidamente comprovados. Penso que a voz sagrada da Igreja, elevando-se contra eles com firmeza e dignidade, e sobrepairando muito além das convulsões publicitárias de certas campanhas demagógicas, poderá ser, em benefício das vítimas de tais abusos, de uma eficácia autêntica, que ela não alcança quando se mescla com a zoeira subversiva.
"Quanto aos demais pontos, parece-me que um Bispo deve pelo menos abster-se.
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"É doutrina católica conhecida por todos nós, que a Igreja não opta por qualquer forma de governo, desde que essa não seja intrinsecamente injusta. Ora, a ditadura, forma transitória de governo, cuja duração as circunstâncias podem impor, não é em si mesma injusta.
"Nós Bispos, e portanto também a CNBB, nenhum título temos para dizer ao País que a adote, ou que opte pela democracia.
"Essa observação é tanto mais oportuna quanto se vem amiudando entre nós pronunciamentos eclesiásticos segundo os quais a democracia seria a única forma de governo realmente justa. De onde decorreria que a ditadura deve ser combatida pela Igreja ratione peccati.
"Ora, Leão XIII bem mostrou que as três formas de governo — de um, de alguns, ou de todos — nada contêm de intrinsecamente contrário à Justiça. E que abusam da Igreja os que invocam a autoridade dela para obrigar os fiéis a optarem por uma dessas formas.
"E São Pio X condenou formalmente como erro modernista a tese de que a única forma de governo conforme à justiça é a democracia.
"Como quaisquer católicos, os Srs. Bispos são livres de optar por uma dessas fórmulas. Porém, só o são quando se empenham em mostrar que falam, não como Bispos da Santa Igreja, mas emitindo uma opinião estritamente pessoal.
"Caso não se tome esse cuidado, o povo não dissociará em seus pronunciamentos a opinião do cidadão da do Bispo. E eles se exporão a utilizar o prestígio sagrado da plenitude do sacerdócio, em benefício de uma opção exclusivamente política, e toda ela pessoal.
"Ademais, como manter aos olhos do povo a edificante impressão da união entre os Srs. Bispos, se estes cedem ao hábito de se pronunciarem em matérias livres e contingentes, nas quais outro Bispo ou outro fiel pode ter pensamento oposto?
"Essas considerações, que estão na mais estrita conformidade com a tradição católica, de algum modo ainda mais fundamento têm no que diz respeito à CNBB, suas personalidades e organismos representativos. Pois soem ser apresentados pelos meios de comunicação social como representantes do pensamento global do Episcopado. E, portanto, não podem pronunciar-se em matérias nas quais o Episcopado não tem nem pode ter pensamento global.
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"Seja-me dado acrescentar algumas considerações sobre a oportunidade da repressão anticomunista.
"Como acima lembrei, o comunismo, intrinsecamente mau, não tem direito à liberdade. Normalmente, o poder temporal que o reprima cumpre um dever sagrado.
"Normalmente, também, essa repressão é oportuna, pois salvas circunstâncias especialíssimas (e a serem, portanto, cuidadosamente comprovadas) a repressão ao mal é oportuna.
"À autoridade eclesiástica cabe, pois, o direito e o dever de aplaudir categoricamente a repressão ao comunismo. E, embora ela se insurja nobremente contra abusos, é preciso que o faça de tal maneira que não pareça recusar seu prestigio e apoio à repressão.
"No momento em que notoriamente a Rússia e a China convulsionam o mundo com sua propaganda, perguntar se é grave no Brasil o perigo comunista parece irrisório. A tal ponto é grave esse perigo, que as questões e hipóteses sobrevindas de uma eventual implantação do comunismo em nosso Pais já foram objeto da cogitação dos Srs. Bispos da Regional Sul II da CNBB (cfr. "Voz do Paraná", 25/4 a 1º/5/76).
"Não só como brasileiro mas como Bispo considero que deveríamos censurar rationi peccati um governo que não reprimisse o comunismo dentro das normas do direito natural.
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"Tal repressão será inoportuna? Exacerbará os ânimos? Agravará o perigo? São estas perguntas especiosas, todas elas de natureza essencialmente política, sobre as quais se deve pronunciar o poder temporal. Quanto ao poder espiritual, desde que o poder temporal informe ser necessária tal repressão (sempre feita segundo o direito natural — acentuo), cabe-nos tomar essa asserção normal e inteiramente digna de aplauso, como provada e válida. E abster-nos de entrar em questões que tocam exclusivamente ao campo da sabedoria política.
"Seria fácil açular contra tal linha de conduta a demagogia de certos órgãos de publicidade mediante a alegação de que um governo que negue a qualquer facção da opinião pública, ainda mesmo comunista, o direito de se organizar, divulgar suas idéias e ter acesso legal ao poder, não é verdadeira democracia. De onde eu estaria excluindo a democracia das formas legítimas de governo.
"Na realidade, também a democracia, para ser autêntica, deve reprimir eficazmente o comunismo. Pois não está de acordo com a doutrina cristã a democracia que assegure ao erro todas as franquias para enganar a população, ao mal todas as liberdades para transviá-la, e para assenhorear-se até em grau supremo da coisa pública. Tal seria caracteristicamente o Leviatã da democracia neopagã.
"Pelo contrário, segundo o ensinamento tradicional dos Papas e notadamente o de Pio XII, é cristã a democracia que assegure as legítimas liberdades da população contra os cometimentos do erro e do mal.
"No caso concreto — acentuo — de um erro e de um mal notoriamente difundidos de fora do Pais, com vistas à extinção da soberania nacional e do que entre nós ainda resta da civilização cristã.
"Por tudo isto, julgo uma invasão de jurisdição, estarmos a discutir, para nosso País, entre formas de governo legítimas, ou a vacilar sem provas nem fundamento sobre uma repressão anticomunista necessária.
a) Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos".