"Folha de S. Paulo", 20 de setembro de 1977

Pão, manteiga e mel

Os Estados Unidos prosseguem seu desconcertante processo de autodemolição política.

Carter acaba de assinar a cessão do Canal do Panamá. E o presidente panamenho não esconde sua simpatia por Cuba.

Assim, aquele estratégico ponto do continente não será uma guloseima irresistível para Fidel Castro a serviço de Moscou?

Já vai começando a afundar no passado — neste nosso século onde tudo que nasce vive pouco, e se transforma logo em novidade sensacional ou em velharia — o extraordinário carrousel de chefes de Estado latino-americanos que Carter reuniu em Washington.

Extraordinário, digo, porque não é nada comum que um presidente de República convoque outros dez presidentes de República para um festival político que celebre a vitória de uma ideologia comum simbolizada pela promessa de restituição do Canal aos panamenhos. Um pouco como o Congresso de Viena celebrara a vitória da doutrina da legitimidade, comum a toda a Europa desde que caíra Bonaparte!

Extraordinário, também, por outra razão. Em nossa época de onipotência estatal, todo presidente de República vive assoberbado. Tudo se espera do governo Este é obrigado a prover a tudo. E os governantes não têm mãos a medir para o atendimento de suas mais imediatas tarefas. Além de imediatas, também dramáticas, pois neste século de equilíbrios quão precários, qualquer problema a que não se atenda pode transformar-se em drama. Assim, é difícil compreender porque o governo americano quis que confluíssem, para assistir à assinatura do tratado, presidentes como os do Brasil, do Uruguai, da Argentina e do Chile, que entre as suas ocupações mais prementes certamente jamais pensaram em colocar os direitos do Panamá sobre o Canal.

Ainda bem que o presidente Geisel, delegando cortesmente ao vice-presidente general A. Pereira dos Santos a incumbência de o representar na cerimônia, aqui se deixou ficar, tratando de nossos próprios assuntos. E que o Itamarati declarou, com a sua elegância tradicional, que o Brasil via o tratado como um assunto entre terceiros, no qual não tinha motivo para intervir.

Falei há pouco do Congresso de Viena. Quantas figuras elegantes, espirituosas, sutis, místicas, ou então colossais e semibárbaras, a referência evoca. Ao som das valsas, desfilam por nossa memória pessoas para as quais, em sua maioria, o tribunal da História foi severo, (e quantas razões há para temer que também o tenha sido o Tribunal de Deus): Talleyrand, o incomparável Metternich, Castlereagh, a baronesa de Krudner, ou então Alexandre I, que, habituado aos rigores do inverno russo, mandava vir neve da Suíça para fazer a barba. Incontestavelmente, este desfile de personalidades traz consigo uma conotação de bom gosto, de leveza — de civilização, enfim — à qual estamos pouco habituados.

Não faremos aqui o paralelo entre o anfitrião Carter e tantos de seus convidados, de um lado, e o anfitrião austríaco Francisco I e os seus de outro lado.

Faça-o cada qual segundo seu próprio gosto, e à sua própria guisa.

Cinjo-me a recordar de passagem a comparação que se tem feito entre Metternich e Kissinger. Penso que ela bem mostra quanto o mundo andou de então para cá. E, por certo, não foi para cima que andou...

Mas, a propósito do Canal do Panamá, o confronto entre Metternich e Kissinger por sua vez já nos parece arcaico. Também Kissinger já vai afundando no passado em que estão sepultos, segundo a mentalidade contemporânea, até os imortais...

* * *

Aliás, a grande figura da cerimônia de Washington também não foi Carter. Nem qualquer outro dos presentes. Foi um ausente.

E este ausente foi Fidel Castro.

Não tanto como indivíduo mas como personificação da agilidade, da perfídia e da força com que a Rússia, ama e senhora dela, vai deglutindo o Caribe.

Enquanto Carter fazia girar seu carrousel em Washington, os EUA, com pasmo para todo o mundo, prosseguiam imperturbáveis no longo processo de concessões e humilhações em que a maior superpotência se vai agachando — até onde? — ante o tirano de longas barbas que domina a pequena Cuba. Ao mesmo tempo, o tirano projeta a sombra de suas barbas e estende suas garras sobre a remota África. Carter parecia, porém, não o perceber, enquanto fazia girar o carrousel na apoteose de sua política de "direitos humanos".

Se as barbas e as garras de Fidel já chegaram a estender as guerrilhas pelas vastidões da América do Sul, e agora as estimulam nas mais distantes vastidões da África, é impossível não desconfiar que ele pretende aproveitar a primeira oportunidade para estendê-las a essa verdadeira guloseima política — tão mais a seu alcance — que é o Canal.

É bem verdade que, segundo o tratado, os americanos só de lá sairão daqui a vinte anos. Mas, que planos estará urdindo o matreiro caudilho da vizinha Cuba, para ajudar os descontentes panamenhos a se desvencilharem dos ianques antes disso?

Quantas agressões, quantas ciladas — ou melhor, quantas alianças — estará ele urdindo para obter isto e assim apossar-se do Canal?

Na perspectiva de Fidel Castro, o grande beneficiário do tratado, foi, de imediato, o Panamá. Mas, a prazo médio, foi ele, Fidel.

É lógico. Para não pensar assim, seria preciso que ele esquecesse todo o seu passado, e todo o seu sujo e triunfal presente.

* * *

É fácil imaginar, pois, com que sorriso felino ele terá recebido este telegrama, que, de regresso ao Panamá, lhe enviou o presidente Omar Torrijos: "De regresso à minha pátria e voando sobre Cuba, saúdo-o com a amizade de sempre. Desejo que o povo cubano, sob sua direção, continue sua marcha para o progresso. Na América Latina, seu nome se associa aos sentimentos de dignidade que se canalizaram para apagar todos os vestígios de vergonhoso colonialismo".

O chefe de Estado panamenho acumulou, para gáudio de Fidel, num texto telegraficamente sintético, toda espécie de gentilezas possíveis.

Assevera ele que sua "amizade" para com Fidel é "de sempre": portanto, mesmo quando mais freqüentes e mais trágicas eram as crueldades de la Cabaña.

Ele deseja o progresso cubano, mas "sob a direção" de Fidel.

Do nome de Fidel — que por dura experiência significa para a quase totalidade dos latino-americanos atentados, tropelias, guerrilhas e por fim, colonialismo sob a bota russa — Torrijos afirma com vertiginoso desembaraço que é um símbolo dos "sentimentos de dignidade" anticolonialista.

Como se vê, o telegrama de Torrijos é para Fidel Castro como a manteiga no pão, e o mel na manteiga.

Se esta fosse apenas a opinião pessoal de Torrijos, o telegrama talvez não fosse tão grave. Mas, como todo político de nossos dias, o chefe de Estado panamenho não teria enviado esse telegrama se lhe causasse dano junto às respectivas bases de sustentação. Bases estas a cujos homens de confiança Torrijos quererá entregar o governo, quando não tiver remédio senão deixá-lo.

O que significa que há uma corrente no Panamá, a qual ao mesmo tempo sustenta Torrijos e gosta de que este aplauda Fidel.

* * *

Com muito menos trunfos do que este, o chefe cubano lançou sua gente sobre Angola, tão menos "guloseima" do que o Panamá, e tão mais distante.

Conclua o leitor...