"Folha de S. Paulo", 25 de junho de 1977
Foguetório e não bombarda
Tantos foram, ao longo de minha vida pública, os pronunciamentos, as atitudes e as batalhas que tive a honra e a alegria de efetuar contra o divórcio, que não há entre os meus leitores quem ignore o que me vai na alma a propósito da introdução dele na Constituição brasileira.
Não quero, entretanto, consagrar o presente artigo a lamentações estéreis. A abolição da indissolubilidade do vínculo conjugal não significa a perda de uma guerra, mas de uma batalha. Uma batalha, sim, na terrível luta entre a Igreja (a autêntica, bem entendido) e o neopaganismo. Uma batalha perdida pode ser vigília de uma batalha ganha. É só neste estado de alma que se consegue vencer uma guerra.
Parece-me que a primeira providência, depois de perdida a batalha, consiste em circunscrever-lhe os danos. Neste sentido, escrevo o presente artigo num espírito de cooperação com quantos se preocupem a continuar na luta. Mais especificamente na luta contra a maré montante do esquerdismo soprado por Moscou na sociedade civil, bem como do progressismo, da autodemolição e da fumaça de satanás que, não sem a cooperação da mesma Moscou, danificam a Igreja de Deus.
E desde logo o primeiro ponto a firmar é que a aprovação do divórcio pelo Congresso Nacional absolutamente não demonstra uma perda de influência da Religião Católica no espírito do povo brasileiro.
A maioria divorcista do Congresso, se quisesse agir em estrita conformidade com os princípios democráticos que alega como base de seu programa político - e falo indiscriminadamente dos arenistas e dos emedebistas pró-divórcio - deveria esperar só mais um ano. Em 1978 teremos eleições legislativas. Os candidatos pró e contra o divórcio teriam então ocasião de apresentar-se como tais ao povo brasileiro. E, se a maioria eleita fosse divorcista, então e só então se poderia dizer que a introdução do divórcio era conforme aos desejos de uma nação em franca decadência religiosa.
Pelo contrário, a maioria parlamentar divorcista aprovou açodadamente o divórcio a dois passos das urnas, inconsultas estas.
Note-se, ademais, que o divórcio de nenhum modo foi tema litigioso das últimas eleições federais. De sorte que a imensa maioria dos brasileiros não sabia como pensavam os candidatos de sua preferência a respeito do assunto. Por que misterioso senso divinatório poderiam os atuais congressistas dizer então como pensavam seus eleitores?
- Dir-se-á que pelos pedidos, mensagens ou até pressões recebidas ao longo do debate, os Srs. congressistas tiveram meios de se certificar do desejo dos eleitores. É precisamente isso que contesto.
Naturalmente, a mentalidade dos católicos é levada a confiar na iniciativa dos seus Pastores, para enfrentar as crises religiosas. E essa iniciativa se mostrou exígua em inteligência, em know-how e plena vontade de vencer. Através de tais porta-vozes - falo descontando as "honrosas exceções" de estilo - a voz do Brasil antidivorcista ecoou no recinto do Congresso, pouco persuasiva, pouco empenhada.
Isto, porém, não significa que o povo seja menos católico. Significa o quê, então? - Abstenho-me de concluir, porque a conclusão fura os olhos, de tão evidente. E passo adiante.
O know-how mandaria que, nesta emergência, o episcopado nacional publicasse, logo quando dos primeiríssimos rumores de perigo divorcista, uma grande Pastoral coletiva, assinada pela totalidade dos Srs. Cardeais, Arcebispos e Bispos do Brasil.
Uma grande Pastoral não é necessariamente uma Pastoral grande. Com concisão, o episcopado poderia ter dado aos fiéis, nessa ocasião, uma síntese inteligente da doutrina católica contra o divórcio. Argumentação fartamente baseada na Escritura, na Tradição, no Magistério da Igreja. Linguagem simples, direta, viva. Exposição franca do pecado que comete quem vota a favor de candidatos divorcistas, ou de quem, sendo legislador, vota a favor do divórcio. Do pecado, também, cometido pelos casados que intitulam de "novo casamento" a união adulterina constituída sobre as ruínas do lar autêntico. As penas canônicas. O juízo particular e o juízo público post-mortem.
Esta Pastoral deveria ser lida em partes, por ocasião de todas as Missas em todas as Igrejas, Capelas, Oratórios do Brasil. E seguida da comunicação de que, em consciência, no pleito, nenhum católico poderia votar em qualquer dos congressistas que agora se pronunciassem pró-divórcio. A lista destes seria lida de público em todas as Missas, logo depois da votação pró ou contra o divórcio, e repetida várias vezes da mesma maneira ao longo da próxima campanha eleitoral.
Soando assim na Casa de Deus todas as tubas sagradas do alarme, o povo católico seria ademais convidado a inundar o Congresso de mensagens pedindo a rejeição da reforma constitucional divorcista.
- Pressão sobre os legisladores? - De nenhum modo, desde que os pronunciamentos católicos se mantivessem, como de direito, nos termos da cortesia cristã. O eleitor é um mandante e o congressista um mandatário. O mandatário não pode sentir-se ofendido nem pressionado quando o mandante lhe significa cortesmente sua intenção.
Talvez se alegue que seria difícil redigir com urgência a Pastoral que imagino. Mas o caso é que essa Pastoral eu não a imagino. O texto dela existe há dois anos. E circulou com brilhante êxito quando da batalha pró e contra o divórcio em 1975. Foi ela a chave que trancou as portas do Brasil ao divórcio, naquela ocasião. D. Antônio de Castro Mayer, o grande Bispo que todo o Brasil autenticamente católico admira e aplaude, publicou-a sob o titulo "Pelo casamento indissolúvel", com 64 páginas. A TFP vendeu-a em todo o Brasil, alcançando a tiragem de cem mil exemplares.
Este incomparável instrumento de defesa, de já testada popularidade, o episcopado poderia tê-lo endossado agora, por simples decreto coletivo. Muito mais modestamente, um claro e corajoso comunicado da CNBB já poderia ter surtido pleno efeito. Teria sido um tiro. E vitorioso.
Ora, deste texto, o que fez a CNBB? O que fez o episcopado? Deixaram-no mofar na gaveta. E seguiram outras vias.
Digo "outras", porque elas foram três: a do sono, a do chuvisco e a da ambigüidade
O Brasil tem ao todo 267 Bispos. Destes, apenas 104 se pronunciaram contra o divórcio, segundo o vasto material (forçosamente incompleto) que pude reunir.
Menos informado é naturalmente o homem da rua, que acompanha os acontecimentos através de seu órgão de imprensa preferido. Para este, a danosa impressão que ficou foi de que nunca menos de 163 Srs. Bispos se calaram. Talvez vários deles se tenham manifestado através de pequenos órgãos eclesiásticos locais. Mas estes, a grande massa não os lê. Assim, repito, a impressão danosa ficou. E, sem que a CNBB nada fizesse de eficaz para removê-la, essa impressão projetou uma sombra de desinteresse ou desânimo. Prejudicando assim o efeito sobre o público, do que diziam os 104 que se pronunciaram contra o divórcio.
Com efeito, nesta era de autodemolição e fumarada satânica, tanta coisa tem mudado na Igreja, que muito ignorante poder-se-á ter perguntado se o divórcio ainda é um tão grande mal quanto disseram os 104 Bispos que falaram. Pois, se assim é, como explicar que tantos outros se tenham calado?
De outra parte, a quase totalidade dos que falaram - e alguns falaram muitas vezes - pouco disseram. Em lugar de substanciosas e retumbantes Pastorais doutrinárias, deixaram cair sobre o público o chuvisco ralo e desconexo de meras entrevistas de imprensa ou breves comunicados, repetindo com uma desconcertante pobreza de argumentos que eram contra o divórcio. Mero chuvisco, extenso na verdade, mas desconexo. Ou, a empregar outra metáfora, simples foguetório antidivorcista, em lugar da grande bombarda doutrinária da Pastoral coletiva que fora necessário detonar.
Ambigüidade não faltou, neste triste panorama. E enfraqueceu ainda mais o minguado alcance do foguetório antidivorcista. Em múltiplos pronunciamentos contrários ao divórcio vinham frases de conteúdo tão desconcertante, que mais pareciam um aceno de simpatia para ele, ou pelo menos de condescendência.
Como espantar que, nessas condições, certo número de deputados e senadores tivesse vacilado, na dúvida sobre o verdadeiro rumo do pensamento católico de amanhã? Não é próprio da fumaça de satanás apresentar um panorama turvo, capaz de desorientar até mesmo olhares sagazes mas desinformados? E não é próprio do processo de autodemolicão que tenha sido mais pelas carências, omissões e ambigüidades, dos dirigentes eclesiásticos, do que pela força do adversário, que a Igreja tenha perdido tragicamente esta batalha?