"Folha de S. Paulo", 9 de junho de 1977
Jimmy e Cavalaria
Chega-nos um tanto atrasada uma folha norte-americana, "The Wanderer" de fevereiro de 1977, a qual dá conta de monumental manifestação contra o aborto, realizada em Washington.
Milhares de manifestantes, parte residente na capital dos EUA e outra chegada em setecentos ônibus, formou, sob a direção do Comitê de marcha pela Vida, uma imensa coluna que, procedente do Capitólio desfilou pela avenida Pensilvânia até a Casa Branca. Era intenção dos manifestantes obter uma audiência com o presidente Carter. Nesse sentido, a sra. Nellie Gray, presidente do Comitê, já escrevera a 28 de dezembro uma carta ao chefe de Estado convidando-o a discursar aos manifestantes. Habitualmente tão amável e sorridente, ele desta vez mostrou-se seco. Mandou simplesmente que um membro de seu staff respondesse ao gentil convite por meio de um "não".
Na véspera da marcha, a sra. Gray, infatigável em sua gentileza, mandou rosas ao casal Carter, acompanhadas das seguintes palavras especialmente dirigidas ao presidente "Convido-o novamente a falar-nos quando formos pedir ao nosso governo medidas para cessar o massacre das crianças não-nascidas". E, em conformidade com a mais estrita lógica, ela acrescentava: "O sr. fala de direitos humanos básicos, censura que se imponha uma qualidade de vida inferior para qualquer pessoa e afirma que o poderoso não deve perseguir o fraco... Tais palavras não devem fazer parte só de um discurso, mas devem ser cheias de substância e ação." Seria talvez impossível apresentar a campanha com maneiras mais amáveis, e em termos mais gratos ao Sr. Jimmy Carter.
Com efeito, todos estarão lembrados de que o novo presidente norte-americano colocou sua atuação nacional e internacional sob a égide de um principio moral supremo, o respeito intransigente e universal pelos chamados direitos humanos. Com uma tônica, bem entendido, em favor dos mais fracos, dos menos conhecidos, dos mais desamparados.
Ora, o aborto colide superlativamente com o respeito aos direitos humanos. Ele atenta sumariamente contra a vida, que é o direito básico cuja posse torna possíveis os demais. Ele atinge fracos por excelência, isto é, pobres entes in ubere materno, e portanto incapacitados de esboçarem em seu favor a mais elementar defesa. Ele massacra inocentes que não têm culpas das quais se arrepender diante de Deus nem diante dos homens. Por fim, ele não prejudica apenas a vida terrena, mas o futuro eterno de suas vítimas. Pois, como em concreto se dá, o aborto priva do sacramento do batismo incontáveis de suas vítimas. Pelo que a estas fica vedado o acesso ao céu. Restar-lhes-á apenas viver no limbo....
Tudo levaria a crer que o primeiro magistrado norte-americano, entusiasmado por mais este campo sublime que se lhe abria para defender os direitos humanos, aquiescesse com ênfase ao convite do comitê diretor da grande marcha. E que, quando esta passasse diante de sua residência da Casa Branca, interrompesse quaisquer atividades para lhes dirigir inflamadas palavras de apoio, incentivo e entusiasmo.
E, ademais, que magnífica oportunidade publicitária num país em que o presidente da República costuma ser candidato à sucessão de si mesmo, pelo menos para o segundo quatriênio. Com efeito, o cardeal Cooke, arcebispo de Nova York, que lidera o Comitê de Atividades dos Bispos Americanos pró-Vida, lamentou, em carta lida em todas as missas dominicais da arquidiocese, a deliberada destruição, por motivos econômicos, de mais de um milhão de crianças cada ano.
Que rútila, que admirável legenda para um candidato a porta-estandarte norte-americano e mundial dos direitos humanos, e à glória de defensor inquebrantável e heróico dos pequenos entes inocentes e desvalidos, que a ferocidade paterna trucida cada ano em tal quantidade!
Por uma matança sem julgamento prévio, de celerados, traficantes de drogas, assassinos ou terroristas em qualquer parte do mundo, que alarido geral! E com razão.
A uma opinião pública sensível a tais desmandos, quanto e quanto mais deveria importar a moderna matança dos inocentes, praticada por pais contra filhos, ao longo dos dias, dos meses e dos anos, mais ou menos no mundo inteiro.
Tudo isto poderia fazer ver ao sr. Jimmy Carter que juntamente com as gentis rosas ofertadas pela sra. Gray, presidente do Comitê de Marcha pela Vida, ela lhe punha nas mãos o que em rigor de lógica, num mundo razoável e são, seria uma das mais belas bandeiras de direitos humanos.
Mas o sr. Jimmy Carter não sentiu as coisas assim. Não condescendeu em receber a imponente manifestação. Mandou simplesmente um assessor entender-se com a sra. Gray e dois dirigentes do Comitê de Marcha pela Vida. Conversa anódina, ao que parece, pois dela "The Wanderer" nada conta de interessante.
Seria inútil e soaria falso ver na abstenção do presidente ianque uma atitude meramente pessoal sua. De tantos milhões de pessoas que se condoem ao ler nos jornais, ou a ver e ouvir nas rádios e TVs episódios sobre os direitos humanos, quantos são os que, por motivos de mera conveniência pessoal, liquidam eles próprios as vidas humanas que geram!
Um lapão que, por imerecida miséria, morra de frio, um cingalês injustamente vitimado em alguma luta social do Ceilão, um negro injustamente baleado na África lhe arrancam lágrimas e protestos. Pouco depois, eles mesmos extinguem em casa a vida que haviam tido a glória de gerar. E a isto chamam "natalidade responsável"!
Nosso século é incoerente em tudo: incoerente de modo frontal, até nas suas compaixões...
A verdade é que a linda bandeira da luta contra o aborto, se agitada pelo presidente norte-americano, provocaria muito mais mal-estar do que entusiasmo.
Mas uma pergunta surge, e fica de pé. Os direitos humanos só devem ser defendidos quando assim não se produz mal-estar nos transgressores?
Ah! como vai longe o tempo da cavalaria...