"Folha de S. Paulo", 28 de maio de 1977

"Não é, não é, não é"

A gripe, diz-se, é um mal paulista. E, mais precisamente, paulistano. Sobretudo na boca do inverno. Ainda incompletamente desvencilhado dela, já começo a sentir ânimo para retomar minhas colaborações para a "Folha de S. Paulo". O que faço sob a forma de um desabafo a respeito da controvérsia de d. Sigaud com d. Casaldáliga e d. Tomás Balduino.

Pessoalmente, estou fora da contenda. Isto não me tira, entretanto, o direito de dizer uma palavra sobre o curso que ela vai tendo.

É bem verdade que, quando três pessoas discutem numa rua em tom de voz comum, ninguém tem o direito de se intrometer. Mas se elas se põem aos gritos, o que dizem passa para o conhecimento geral, e portanto fica exposto também ao julgamento geral. Pois nada pode impedir um homem que forme seu juízo sobre o que foi levado ao seu conhecimento. E de fazer comentários com seu vizinho.

De fora, como mero transeunte, não posso deixar de fazer um comentário sobre os mais recentes lances dessa polêmica que tanto vai interessando todo o Brasil.

A este título, entro no tema.

Um quotidiano dos de maior circulação no País, o "Jornal do Brasil", publicou três páginas inteiras do relatório - aqui transcrito, de ponta a ponta, pelo "Estado de São Paulo" - em que d. Sigaud argumenta em apoio da acusação de comunistas, que dirigiu aos bispos de São Félix do Araguaia e Goiás Velho.

Em artigo anterior, já tomei posição diante do mérito do assunto. Não preciso, pois, voltar a ele.

Por hoje limito-me a acentuar que mesmo os mais fogosos dentre os defensores daqueles dois bispos não podem negar ao documento de d. Sigaud algumas reais qualidades: contém ele uma argumentação séria, isto é, baseada em fatos impressionantes, concatenados entre si por um raciocínio vigoroso, desenvolvido com esmerada clareza e correção.

Em conseqüência, se eu estivesse em desacordo com o arrazoado do arcebispo de Diamantina, eu me sentiria na obrigação de lhe fazer uma réplica à altura. Isto é, eu procuraria com igual seriedade e elevação contestar os fatos e os silogismos por ele apresentados.

Se eu me sentisse incapaz de responder à altura, calar-me-ia.

Com efeito, vel taceas vel meliora dic silentio - "cala-te ou dize coisas mais interessantes do que o silêncio", preceituava a clássica e áurea regra. Não posso esquecer-me de a ter lido, inscrita em artística cerâmica, junto à soleira da casa de meu saudoso amigo Mons. Castro Nery. E ela me volta ao espírito em certas ocasiões. Nesta, agora, entre outras. Pois responder sumariamente, levianamente, com afirmações gratuitas e até absurdas, a um arrazoado bem pensado e bem formulado, é ficar por baixo. É dizer coisas muito inferiores às que diria o silêncio... mesmo o mais contrafeito.

Pois foi precisamente a norma tão cara a Mons. Castro Nery, que numerosos bispos brasileiros transgrediram com uma desinibição desconcertante, quando se pronunciaram pela imprensa sobre o relatório de d. Sigaud.

Tenho sobre a mesa os recortes de jornal que o Serviço de Documentação da TFP me forneceu a respeito.

O cardeal d. Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e d. Afonso Niehues, arcebispo de Florianópolis, por exemplo, deram como argumento para justificar seu desacordo em relação a d. Sigaud, que d. Casaldáliga e d. Tomás Balduino não eram comunistas porque é inacreditável que um bispo possa ser comunista.

Só isto. Quando qualquer aluno de Catecismo sabe que, individualmente, um bispo pode cair em heresia. E, portanto, pode ser comunista. Quando, ademais, qualquer homem medianamente informado sobre a História da Igreja conhece numerosos casos - insisto: "numerosos" - de bispos que, ao longo dos séculos, caíram em heresia. Por que não poderia acontecer o mesmo a algum sr. bispo do Brasil, nos anos 70? Esperam realmente os dois autores dessas "refutações" a d. Sigaud que alguém se tenha deixado convencer por elas?

Outros Srs. bispos, o cardeal d. Aloisio Lorscheider, arcebispo de Fortaleza e presidente da CNBB, d. Ivo Lorscheiter, bispo de Santa Maria e secretário-geral da CNBB, d. José Maria Pires, arcebispo de João Pessoa, d. João Batista da Motta e Albuquerque, arcebispo de Vitória, d. José Brandão de Castro, bispo de Propriá, d. Quirino Adolfo Schmitz, bispo de Teófilo Otoni, d. Jaime Luís Coelho, bispo de Maringá, d. Frederico Didonet, bispo de Rio Grande, d. Moacyr Grechi, bispo do Acre-Purus, d. Alano Pena, bispo-auxiliar de Marabá, d. Lelis Lara, bispo-auxiliar de Itabira, reagiram de modo diferente. Não sei se com mais mau gosto ainda, ou com menos. Depende talvez do paladar de cada leitor.

Não disponho de espaço para transcrever uma por uma as declarações deles. De modo geral, limitaram-se a dizer que d. Casaldáliga e d. Tomás Balduino não são comunistas, simplesmente... porque não são.

Repito: a polêmica desceu a este nível: "os dois bispos não são comunistas porque digo que não são".

D. Aloisio Lorscheider, d. José Maria Pires e d. Frederico Didonet acrescentaram uma pequena variante: os dois bispos incriminados não devem ser tidos por comunistas porque eles, d. Aloisio, d. Pires e d. Didonet, os conhecem pessoalmente e sabem que não o são.

O que d. Tomás Balduino e d. Casaldáliga teriam dito em conversas privadas com d. Aloisio, d. Pires e d. Didonet bastaria, portanto, para derrubar toda a argumentação séria e até impressionante, de d. Sigaud.

A que público, no mundo inteiro, tal gênero de argumentos pode persuadir?

Faço este comentário, independente de minha opinião pessoal sobre o mérito do assunto. Fá-lo-ia do mesmo modo se estivesse persuadido da inocência dos dois bispos acusados por d. Sigaud, pois neste caso não poderia a inocência estar mais mal servida.

Meu comentário - eu deveria antes dizer, minha lamentação - é simplesmente em razão do desnível cultural desolador que em certas fileiras de nosso episcopado assim se manifesta.

Aliás, para mim, nada disso é novidade. Já quando, há meses, publiquei, em meu estudo "A Igreja ante a escalada da ameaça comunista", várias críticas a figuras do episcopado (entre as quais d. Casaldáliga) fui alvo de cinco pronunciamentos episcopais, englobando um total de vinte bispos. A argumentação de todos se cifrava em bater com o pé no chão, dizendo: "não é, não é, não é"!

Para certos elementos de nosso mundo religioso, debater idéias, analisar atitudes e situações, esclarecer a opinião pública parece, neste Brasil de 1977, reduzir-se a isto. Pelo menos segundo os hábitos da esquerda católica, ou de personalidades que, sem se dizerem filiadas a esta, pura e simplesmente não toleram qualquer crítica contra a mesma.