"Folha de S. Paulo", 21 de fevereiro de 1977

 

Bálsamos, ungüentos e chazinhos curam câncer?

 

Não sou dos que acreditam ser a vida dos povos impulsionada, em suprema instância, pela economia, pela geopolítica, etc. Sem dúvida, as temáticas estudadas nestas e em outras matérias condicionam o curso dos acontecimentos. Em geral não os determinam, porém. Verdadeiramente determinantes na História são as convicções - ainda que expressas, por vezes, em termos de negação de qualquer convicção - religiosas e filosóficas.

Essa minha persuasão de nenhum modo resulta de uma concepção livresca da História e da vida. As doutrinas filosóficas e religiosas impulsionam o acontecer humano, não na proporção do espaço que ocupam nos livros, mas na medida em que vivem na alma dos povos.

Para dar um exemplo, reporto-me ao mais augusto deles. É a Igreja Católica Apostólica Romana. Ela guia os povos na medida em que estes, correspondendo à graça divina, se deixam ensinar, santificar e guiar por ela. Se um povo católico faz uma idéia deformada da religião, ele será guiado, não pela Religião e pela Igreja Católica como está na Escritura e nos documentos do magistério, mas pela corruptela que ele tenha na alma.

* * *

Não pense o leitor que, a partir destas considerações, me apresto a analisar a reunião da CNBB em Itaici. Por hoje meu tema é outro. Isto é, o centrismo.

Se se fizer um gallup no País, não tenho dúvida de que uma minoria, embora inibida pela propaganda e pelo ambiente, terá a coragem de se afirmar direitista. Outra minoria, mais minguada, porém estimulada "a bombos y platillos" pela propaganda, se dirá espalhafatosamente esquerdista. A grande maioria, caso perguntada se é centrista, responderá afirmativamente.

Em conseqüência, caso queiramos saber para onde tende o Brasil no momento, é preciso indagar o que é o centrismo. Não o centrismo como está nos livros. Mas o centrismo conforme o sente e o conceitua a maioria.

* * *

Passo a descrever.

Creio que antes até de ser uma doutrina política, social ou econômica, o centrismo é, para a maioria, uma difusa concepção do universo, e especialmente do que poderíamos chamar o "universo brasileiro". Correlatamente, nosso centrismo é um estado psicológico e temperamental.

Segundo sinto o centrista, este parte da noção de que, no Brasil, a imensidade do território, a doçura do clima, a generosidade e a suavidade de toda a conduta da natureza mínguam entre nós os fatores que têm levado tantos outros povos a crises, revoluções e guerras. De outro lado, a índole pacata e afetiva do brasileiro fá-lo ter aversão a rixas, intrigas ou dramalhões.

E daí procede o estado de espírito. O brasileiro médio prefere "deixar correr o marfim" e aceitar opiniões ou soluções que não sejam exatamente as suas, desde que consiga compor dessa maneira correntes divergentes e atenuar-lhes as arestas, bem como os contornos, na grande e meiga despreocupação do ambiente geral.

Dentro desta concepção, o autêntico centrista brasileiro - não falo das contrafações - na maior parte dos casos não é um tenaz homem de doutrinas, emperrado numa posição, e em luta tão feroz contra a direita e a esquerda quanto a direita e a esquerda o são por vezes uma com a outra.

Salvo em algumas matérias muito especiais, o centrista brasileiro espontâneo e genuíno (insisto nos adjetivos) é o que procura compor o direitista com o esquerdista. Na composição, entra a dosagem de ecléticas simpatias que cada centrista possa nutrir - de longe - em relação à direita ou à esquerda. E o quantum de concessão que o centrista julgue necessário para aquietar a esta e àquela.

Desta regra geral só se excetuam as causas que tocam em certas fibras profundas do espírito nacional. O senso da soberania e dignidade do País, antes de tudo. Ou a bondade tão típica, que adota como suas todas as causas em que há desvalidos a defender: a abolição dos escravos, por exemplo.

* * *

Qual a utilidade desta descrição?

Uma dura experiência de insucessos e rejeições persuadiu os dirigentes do comunismo internacional de que eles não podem arrastar para as suas delirantes demasias doutrinárias ou práticas uma tal maioria centrista. Até mesmo porque, perspicazes como são, os brasileiros percebem que, se há entre eles desvalidos a ajudar, tal ajuda nunca se fará pela implantação do comunismo. Pois este transformará desde logo o país num campo de concentração com 110 milhões de desvalidos. Quanto à soberania e dignidade nacionais, nem se fale. Basta deitar os olhos em Cuba ou na África, sem necessidade de estende-los até a Europa e a Ásia.

Qual é então, para o comunismo, o meio de vencer? Não podendo dominar os centristas, a saída consiste em fazê-los andar despercebidamente, a passo e passo, para o regime que entretanto repudiou.

Como? Por meio de uma comédia. Esta é simples. Na extrema-esquerda estão os comunistas. Logo, é fácil fazer crer ao centrista ingênuo que, por um princípio de simetria, devem catalogar como integrantes da extrema-direita os anticomunistas. Ambos esses extremos são marginalizados pela zoeira de certa campanha centrista (isto é, pela campanha de certo centrismo ácido, tumultuoso, reivindicatório e agressivo, que não é senão uma contrafação "made in Rússia" do doce, afável e bondoso centrismo brasileiro.

Assim, o comunismo relega para um canto e inutiliza todos os seus adversários genuínos. E para acabar de os desacreditar aos olhos do público, procura atirar sobre eles, como ultima pá de terra, o epíteto de nazistas.

No outro extremo ficam, é certo, os comunistas declarados. Considerados como um bloco, parecem viver como que num gueto moral. Mas ai de quem toque nesse gueto, ainda que de leve. Vozes habilmente colocadas em lugares- chaves da estrutura centrista protegerão esse gueto com zelo furibundo.

O centrista - e falo aqui do centrista brasileiro tradicional e autêntico, e não do centrista contrafação - é induzido a só ver diante de si, no tabuleiro, duas correntes "não-extremistas", a se entrechocarem: capitalistas e socialistas.

Movido pelo seu velho hábito da composição, do acordo e do "jeitinho", o que faz instintivamente o centrista autêntico? Procura um meio termo que tempere as dissensões. Ora, o socialismo está em posição de avanço reivindicatório. E o capitalismo está numa estagnação mórbida. O que faz com que, a cada raspão entre essas correntes, o centrista peça, pro bono pacis, que o capitalista ceda um pouco ao socialismo, e este se ponha tão só a rugir um pouco menos alto.

Ao cabo de pequena pausa, o socialismo "esquecerá" a concessão e se porá novamente a rugir. O capitalismo fará novas concessões, e o Brasil ficará um pouco mais socialista.

O resultado final é uma questão de tempo. Aos pedacinhos ou aos pedações, o socialismo, por sucessivos pedidos dos centristas, terá transformado inteiramente o Brasil.

E o que seria um Brasil assim totalmente modificado? Um Brasil no qual a propriedade particular e a iniciativa privada tivessem sido totalmente absorvidas pelo capitalismo de Estado? Obviamente, um Brasil comunista.

Esse, o jogo maquiavélico do comunismo.

Em suma, todos os centristas brasileiros precisam persuadir-se de que no Brasil tão suave, tão harmônico, tão tépido e pacífico dos antigos tempos, entrou um dado novo. Formou-se um câncer roedor. E que este câncer não pode ser vencido pela mera política de concessõezinhas, pelos bálsamos, ungüentos e chazinhos dos antigos tempos.

Ser moderno não é unicamente bater palmas aos progressos vertiginosos do século, mas também diagnosticar e atalhar a tempo os perigos também vertiginosos do século. E entre estes figura o comunismo, a impor, não componendas, mas luta. Luta cristã, é certo. Por isto mesmo, luta perspicaz, contínua, altaneira, como a dos cruzados.

Este é o dever dos autênticos centristas do século XX, se não querem perecer.

* * *

    Sumário

Por temperamento e em razão de um estado psicológico - decorrente da suavidade das condições da natureza e da sua índole pacata e afetiva -, o brasileiro médio é centrista.

Mas, o centrismo brasileiro espontâneo e genuíno distingue-se fundamentalmente do centrismo "made in Moscou".

Qual a manobra utilizada para levar esse Brasil ao comunismo inadvertidamente?

E o Leitor considera-se um centrista? Qual o dever dos autênticos centristas