"Folha de S. Paulo", 29 de janeiro de 1977
O "Show" feito de três "shows"
O interêsse despertado pela matéria de meu último artigo "O Show", de 13 do corrente, me leva a cumprir a promessa que neste fiz aos leitores. Explicarei hoje, portanto, como não foi senão um - mas quão sangrento - show a crise tupamara do Uruguai.
Não faço aqui senão condensar e ordenar em forma jornalística a matéria da lucidíssima obra "Izquierdismo en la Iglesia: "compañero de ruta" del comunismo en la larga aventura de los fracasos y de las metamorfosis", que a TFP uruguaia lançou em Montevidéu em 16 de dezembro p.p.
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Uma palavra, antes de tudo, sobre o que se poderia chamar a pré-história do assunto. Antes de ter início, no ano de 1964, a aventura tupamara, o Uruguai já fora objeto de várias tentativas de penetração comunista. Todas haviam sido em vão. O número de aderentes do comunismo continuava irrelevante, e sua possibilidade de aumento praticamente nula. Mais ainda. O rótulo de "comunista" provocava repulsa quase geral.
Na impossibilidade de vencer utilizando seus próprios contingentes, o que restava ao PC uruguaio, como epilogo dessa fase? Era tentar obter a vitória por meio da maioria não-comunista. Esta constituiria a grade massa de manobra, incumbida da parte meramente executiva, e dos papéis menos arriscados. As função diretivas e as de risco de vida tocariam à minoria comunista.
Com base em tal princípio, foi ideado por Moscou o plano de ação. Consistia ele, provavelmente, em lançar o Uruguai num regime não diretamente comunista, socialista-reformista. Seria menos árduo atrair para este - ou resignar a este - a maioria não-comunista da população. Bem entendido, o novo regime seria dirigido por esquerdista "duros", ou seja, comunistas; e por seus acólitos, os esquerdistas "moles", ou seja, socialistas.
Os mentores da ofensiva comunista tinham todos os dados para conjeturar que seu plano esbarraria na indiferença e até na hostilidade da maior parte da população. A fim de levar essa maioria à capitulação, seriam necessários dois show simultâneos: um publicitário e outro terrorista.
Solidamente encastelados nos meios de comunicação social, intelectuais, redatores e locutores comunistas haveriam de dar a impressão de que o magma socialista-reformista se ia transformando numa força de opinião avassaladora, a qual seria inútil resistir.
Ao mesmo tempo, o terrorismo criaria a impressão de dispor de uma força material capaz de inundar de sangue o país, caso o socialismo-reformista não alcançasse a vitória. Ou caso os líderes deste, uma vez levados ao poder, não executassem cabalmente as reformas programadas.
Dois shows, portanto. Um anunciado ao país pela televisão, imprensa e rádio, e outro pela boca das metralhadoras, pelo estampido das bombas, pela violência dos seqüestros.
Naturalmente, quando falam juntos a metralhadora e a propaganda, fala mais alto a primeira.
O show tupamaro se desenvolveu pari passu com o show publicitário, mas ganhou desde logo tanta preeminência na imaginação pública, que este último acabou por desempenhar um mero papel de "fundo musical".
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São singulares as coisas neste vale de lágrimas. A favor da revolução a caminho da vitória, uma outra força se fez sentir desde logo. Imensamente menos espalhafatosa do que a do show publicitário, ela utilizava de preferência cartas pastorais lidas dos púlpitos ou discretos conselhos sussurrados nos confessionários. Em vez dos estampidos terroristas, o dobrar melodioso dos sinos. Era a Hierarquia eclesiástica que, em sua grade maioria, apoiava desse modo o socialismo-reformista, fornecendo matéria para largas tiradas comuno-"católicas" do show publicitário, e fazendo aparecer aos olhos do público, em luz propícia, os crimes tupamaros.
Assim, dignitários da Igreja católica inculcavam ao povo princípios contrários aos da religião católica. Em nome da Igreja verdadeira, ensinavam uma doutrina falsa. Era o terceiro show. O mais espantoso, o mais eficaz de todos. O show eclesiástico.
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No Brasil, estender-se em introduções não é perder tempo. Nosso povo, ágil, intuitivo, sumamente afeito a acompanhar os vaivéns políticos, decifra num só lance de olhos toda uma narração histórica emaranhada, desde que a introdução lhe tenha posto ao alcance o fio condutor dos fatos.
Neste sentido, o próximo artigo, último da série, será quase exclusivamente uma cronologia na qual o leitor verá claro, porque conhece de antemão os dados do problema.
O próximo artigo será, assim, como que um teste de destreza política, que o leitor poderá fazer a fim de medir a própria argúcia.
Deixo esse teste para a semana que vem.