"Folha de S. Paulo", 18 de dezembro de 1976
Falta Coragem para Pedir Provas?
Há 32 dias, a Comissão Representativa da CNBB, constituída por cerca de quarenta bispos, baixou uma "Comunicação Pastoral ao Povo de Deus". A opinião pública alertou-se vivamente com o documento subversivo, cuja divulgação tomou desde logo vulto de um verdadeiro escândalo. E foram necessários muitos dias para que, entre nauseado e bonachão, o público começasse a pensar noutra coisa.
Foi quando outro escândalo do mesmo gênero sobreveio. A propósito de fatos ocorridos no Estado do Pará, uma "Comissão Pastoral da Terra", que se qualifica de "organismo ligado à conferência Nacional dos Bispos do Brasil", e constituída pelo presidente d. Moacyr Grechi bispo-prelado do Acre-Purus, do secretário executivo pe. Ivo Poletto, e de representantes das 14 Regionais que a integram, lançou por sua vez um manifesto em que a nota subversiva está presente de principio a fim.
O documento denuncia torturas "físicas e psicológicas" de que teria sido vítima o pe. F. Maboni. Logo em seguida assinala a "assustadora freqüência com que indivíduos presos em nome da "segurança nacional" assinam "confissões" e fazem "retratações", em troca da liberdade com que são contemplados em seguida". E passa a referir que os bispos de Conceição do Araguaia e de Marabá, d. Estevão e d. Alano, "também foram submetidos a massacrantes interrogatórios, durante dois dias. Fala depois de "agentes pastorais e posseiros que ainda estão presos". Em seguida qualifica de fraudulenta a "fuga" (sic) de um ex-soldado acusado de ter assassinado o pe. Penido Burnier. E Depois de pedir a punição das pessoas responsáveis pelos assassínios e torturas, conclui fazendo suas as palavras da "Comissão Pastoral ao Povo de Deus": "Todavia, a simples punição dos executores dos crimes não pode tranqüilizar a consciência das autoridades, enquanto o sistema sócio-político e econômico continuar gerando uma ordem social marcada por injustiças e propícia à violência".
Como se vê, a saraivada de acusações, depois de atingir estes e aqueles, acaba se estendendo a toda a estrutura política, social e econômica vigente, e implicitamente a todos quantos dirigem, sustentam ou defendem esta ordem.
E, como se não bastasse, especifica a seguir a pesada acusação contra o poder judiciário, quando afirma que vivemos em um "sistema em que o dinheiro compra a justiça e as consciências".
Muito explicavelmente, o manifesto da Comissão Pastoral da Terra se solidariza com o documento eclesiástico pró-comunista anterior: "Queremos ainda, nesta hora, expressar à CNBB nosso irrestrito apoio pela profética "Comunicação Pastoral ao Povo de Deus".
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Vistas em conjunto, todas estas acusações produzem uma sensação de vertigem.
Não se compreende, com efeito, como eclesiásticos que ocupam funções importantes num órgão vinculado à CNBB possam levar tão longe a irresponsabilidade. Vivem nossos bispos esquerdistas a reclamar contra torturadores e violadores dos direitos humanos. Sabem eles que sua atitude importa numa verdadeira tortura espiritual para todo o Brasil católico — digo autenticamente católico — capaz de ler e avaliar documentos como estes?
Com efeito, acusar é coisa muito séria. E ninguém tem o direito de fazer acusações sem produzir ao mesmo tempo as provas do que assevera. Sabe-o qualquer criança.
A violação desta regra importa na negação de um dos "direitos humanos" mais elementares e mais claros: todo mundo deve ser tido por inocente, salvo prova em contrário. Arrastar pela lama a reputação de outrem, sem exibir provas suficientes, importa muito menos no descrédito da pessoa injuriada, do que no do acusador. Este se revela, ao pé da letra, um injusto agressor, digno de repulsa.
E esta asserção é tanto mais verdadeira quanto o agressor empregue meios injustos para praticar a sua má ação.
Ora, em matéria de agressão moral — e é bem do que se trata no momento — não conheço meio mais injusto do que o emprego abusivo da credibilidade que, em certos ambientes, ainda se atribui à palavra do bispo e do padre, para fazer circular acusações sem provas.
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Deixemos de lado o caso Maboni e o assassinato do pe. Burnier, etc. Estão sujeitos à apreciação do Poder Judiciário, ao qual incumbe esquadrinhá-los em todos os aspectos, para finalmente lançar sobre eles seu veredicto imparcial. É incompreensível que, enquanto tal não ocorra, autoridades eclesiásticas se antecipem ao pronunciamento do poder competente, se ponham a tagarelar — e com quanta agressividade — sobre o assunto. Porém, pior ainda é a atitude da Comissão Pastoral da Terra, que, prevendo talvez uma solução que não lhe agrade, se põe desde já a acusar de venalidade todo o Poder Judiciário do País.
-- Com que provas? Terão os componentes da Comissão esquecido que um juiz não é menos homem do que um padre, ou um agitador comunista? E que absolutamente não tem menos direitos do que eles à própria reputação?
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O mesmo se diga dos atuais responsáveis pela ordem política, social e econômica vigente.
Afirma o órgão episcopal que as autoridades que a apoiam não podem ter a consciência tranqüila. Ora, como todas as autoridades apoiam esta ordem é contra todas elas — e não só contra o Judiciário — que se volta a Comissão.
Ainda que essa ordem tenha acidentalmente aspectos injustos — e qual não os tem, neste vale de lágrimas? — É ela injusta em si mesma? Ignoram os membros da Comissão os numerosos documentos pontifícios de todos os tempos, nos quais ela se funda? Com que direito a Comissão procura então submeter à verdadeira tortura que é para o homem de bem uma dúvida de consciência, milhares de brasileiros?
— Milhares? — Melhor diria eu, milhões. Pois são milhões de brasileiros que ficam sem saber o que pensar, desalentados, perplexos, angustiados, ante esse abismo de atos injustos e literalmente persecutórios praticados por agentes do Poder Espiritual.
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Para concluir, apenas mais uma observação. O Ministério da Justiça reagiu a todas essas baixezas com uma nota serena, elevada, mas que tem todo o valor de um desafio, no qual defende a honra do Poder Público, de tal maneira vilipendiada.
Afirma o documento que as acusações da Comissão Pastoral "Não assentam em nenhum elemento de prova". O que é obvio. Implicitamente, a nota do Ministério desafia os acusadores a que exibam suas provas. Transcorreram sete dias, e essas não surgiram. E tudo faz prever que não surgirão.
Prossegue a nota do Ministério da Justiça, referindo-se "à subversão e à desordem, muitas vezes alimentadas por quem, longe de cooperar no esforço das autoridades, instiga os ingênuos, alia-se aos agitadores e fomenta a intranqüilidade, contribuindo para desfechos indesejáveis, que depois explora tendenciosamente".
Neste tópico, o Ministério faz uma gravíssima acusação a tantas autoridades eclesiásticas transviadas.
— Essas terão a coragem de, por sua vez, pedir provas ao Poder Público? — Nesses sete dias não há o menor sintoma disso.
— Por que, tão desinibidas e loquazes na acusação, elas se mostram tão murchas e cautas na defesa?