"Folha de S. Paulo", 10 de dezembro de 1976
Num consultório psiquiátrico, o médico interroga longamente um homem:-- "O sr. insiste, então, em que seu irmão está louco?"-- "Sim, doutor. Posso narrar-lhe mais alguns fatos sintomáticos a este respeito". — E o homem continua sua cantilena para o médico, que o ouve entre cético e agastado. A horas tantas, o facultativo o interrompe:
-- "Afinal, nada do que o Sr. me conta é muito concludente. Alguns fatos podem ter uma explicação normal. Vários outros são algum tanto esquisitos. Mas, em rigor, podem ser explicados por certa tensão nervosa, causada talvez pelo estado dos negócios dele. Nada vejo que demonstre claramente, indiscutivelmente, um estado de desequilíbrio".
O homem, perplexo, retrucou:
-- "Doutor, peço-lhe apenas mais cinco minutos, para lhe contar um último caso". — E, diante da aquiescência do médico, a pequena narração começou.
Ponha-se o leitor na posição do psiquiatra, e julgue por si os fatos.
* * *
-- "Meu irmão, doutor, mora numa casa pobre, sombria e mal arranjada, a qual é vizinha da chácara X, pertencente ao maior ricaço da cidade.
"Inconsolável de não ser ele mesmo ricaço, meu irmão começou a hostilizar seu poderoso vizinho. Armou intrigas na criadagem deste. Depois, fomentou uma espécie de greve dos criados contra o patrão.
"Este último, não querendo perder tempo — ‘time is money’ — com questiúnculas destas, resolveu a brigaria doméstica como pôde, e voltou-se para meu irmão.
"O sr. pensa, com certeza, que ele incumbiu o advogado de ameaçar meu irmão e o denunciar à polícia como subversivo. Ou que lhe acenou com alguma outra forma de perseguição.
"Qual nada! O ricaço mandou oferecer créditos a meu irmão, para que reformasse a casa velha e feia, alimentasse e lavasse convenientemente os filhos sujos e famintos, iniciasse plantações metódicas em sua terra, que não é má. Evidentemente, o ricaço esperava assim fazer uma aplicação de capital pequena, reembolsável a prazo indefinido e a juros baixos. Mas que, pelo menos, o livrasse da amolação daquele vizinho incômodo.
"O oferecimento deveria ter distendido meu irmão. Mas, nada disso! Ele aceitou a oferta de dinheiro, que usou logo em seguida para prolongar a efervescência na propriedade do vizinho e para semear contra este antipatias no bairro inteiro. Prevendo uma agressão que de nenhum modo um vizinho tão bonachão lhe faria, meu irmão começou a armar-se. Foi assim que todos interpretamos a continua entrada de revólveres na chacarazinha, onde, aliás, tudo — casa e crianças — continuava pobre e sujo como antes.
"Mas as escamas nos caíram dos olhos quando vimos que, com as gordas verbas do ricaço, meu pobre irmão demente montara nada mais nem menos do que uma oficina para fabrico doméstico de armas e pequenos explosivos. Meu irmão, doutor, queria invadir a chácara do ricaço, rompendo assim com este, e estancando consequentemente a fonte opulenta dos créditos com os quais ele podia sair da miséria. Daquela mesma miséria que fora a causa primeira de seu ódio contra o ricaço.
"Note bem, doutor, a contradição. Ele odiava o homem porque este era rico. E ele pobre. O homem lhe dá meios de deixar de ser pobre, e ele, em lugar de tirar proveito do gesto, ataca o benfeitor.
"Como o sr. pode imaginar, não faltou quem fosse contar tudo isso ao ricaço. E este, sempre muito sensato, chegou à conclusão de que no coração de meu irmão ferviam a inveja e o ódio porque as verbas talvez não fossem suficiente para lhe distender o ânimo.
"A loucura, como o sr. sabe melhor do que eu, tem lá sua lógica. Percebendo que, quanto mais amolasse e ameaçasse o ricaço, mais dinheiro obteria, meu pobre irmão vai aumentando os equipamentos, as intrigas e os planos de agressão. E’ claro pelos menos na cabeça de um louco.
"O sr. faria isso, doutor, com alguém que lhe fizesse empréstimos camaradas para reformar o consultório e a residência, reequipar a despensa e os armários da família e comprar um carro novo? Meu irmão está ou não está louco, doutor?"
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Pergunto-lhe, leitor, na posição do médico, qual seria sua opinião? Julgaria louco o chacareiro bilioso?
Em todo caso, o sr. não é médico. Nem eu também. Vejamos qual foi a reação do médico.
Enfarado, agastado, ele se levantou, dando por finda a consulta. E, enquanto se ia arranjando para sair, disse rispidamente ao homem embasbacado: "Seu irmão nada tem de louco. E’ um refinado velhaco, que explora o ricaço bonachão. Este sim, é o verdadeiro louco da história. E o sr., meu caro, não passa de um ingênuo. Para sua idade, um retardado mental. Ou o sr. sai logo daqui ou mando trancá-lo para exames psiquiátricos. Pois não é possível ser sadio da mente e ao mesmo tempo ingênuo assim".
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A historieta termina com o pobre homem fugindo apressado pelo elevador. Quando chegou à rua, acalmou-se um pouco, coçou a cabeça e pensou:
-- "Este mundo anda cada vez mais cheio de loucos. Meu irmão é louco. Vejo que este doutor não está longe de o ficar. O único homem sensato dessa história é o ricaço. E, bem entendido, eu também".
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-- Leitor, qual é sua opinião? Em tudo isto, quem é o louco?
Lembrei-me de toda essa historieta lendo na imprensa, na semana passada, a notícia de que um tal Patolichev, ministro do Comércio Exterior russo, ameaçou o sr. Simon, secretário do Tesouro dos EUA, de que a Rússia se desinteressará do mercado norte-americano se não progredirem logo suas negociações comerciais com a América do Norte. Simon, bonachão, prometeu pedir a Carter que influencie o Congresso no sentido de fazer cessar os obstáculos que ainda existem para incremento das relações comerciais entre os dois países. Simon procurava, assim, afastar de sua pátria a "ameaça" feita pelo tal Patolichev.
A par disto, os mais recentes telegramas noticiam que submarinos soviéticos postados no mar de Barents, junto à península de Kola, já agora podem tranqüilamente devastar com bombas nucleares a costa atlântica dos EUA. Liquidar Nova York, por exemplo. Porém, não há o menor sinal de que, em razão disto, os financiamentos norte-americanos para a Rússia vão diminuir. Na lógica da détente, devem até aumentar, tentando estancar por fim a irritabilidade soviética.
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-- Entre estas notícias e a história que ficou acima, há algum nexo, leitor?
Se há, pergunto: quem é o louco?