"Folha de S. Paulo", 5 de dezembro de 1976

O "Homem da Rua" sobre quem a pomba pousou

A poluição em todas as suas formas, continua problema atual. mais especialmente tenho em vista aqui a poluição moral inerente à vertiginosa decadência dos costumes, e a poluição mental provocada pela trepidação da vida hodierna e pelo pandemônio ideológico que a guerra psicológica revolucionário movida por Moscou generalizou no Ocidente.

O meio de fugir disso? Uma excursão, por exemplo, ou a audição de alguns belos discursos, a leitura de um romance, contentam a vários. Há os que se satisfazem com menos, isto é, com a ingestão de qualquer comprimido que favoreça a evasão para as profundidades de sonos insondáveis. Entre tantos recursos despoluentes, há também a excursão às extensas regiões do passado, ou seja, a leitura de narrações históricas. No píncaro destas, existe a legenda, com o encanto de sua leveza de seu simbolismo, de seu esplendor.

Para a decepção da maioria e o possível contentamento de uns poucos, é uma viagem ao passado que proponho neste fim de semana. Não ao passado histórico, mas ao passado legendário, tão lato, tão belo, que por alguns lados parece tocar na própria eternidade. Acabo de ler um conto tomado mais ou menos a esmo na "Légende Dorée", de Jacques de Voragine. Queres viajar comigo nas regiões etéreas deste conto, leitor?

Fabiano era um simples romano como outro qualquer. Um "homem da rua", como hoje se diria. E sequioso de notícias como são em todos os tempos os seus congêneres.

Ora, havia em Roma, ainda recente uma grossa novidade: morrera o Papa. E estava em gestão uma novidade ainda maior, ia ser escolhido pelo povo o novo Pontífice. Nosso "homem da rua", segundo o costume, saiu de casa e se misturou na multidão, reunida para a augusta escolha. Fabiano julgava chegar atrasado, isto é, a tempo somente de conhecer o resultado.

E este veio, bem diverso do que Fabiano podia imaginar. Do alto do Céu baixou uma pomba de esplendorosa alvura, e pousou sobre a sua cabeça. Por esse fato simbólico, o Espírito Santo deixava claro que designava Fabiano. A multidão, piedosamente entusiasmada, escolheu-o Papa. E Fabiano, que saíra à rua para passeio, se viu alçado assim à dignidade inigualável de sucessor daquele de quem o Salvador disse: "Tu es Pedra, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt. 16, 18). E a partir daquele momento a "solicitude de todas as igrejas" (2 Cor. 11, 28) passou a ser a única preocupação e a única atividade de sua vida.

Aqueles remotos tempos se assemelharam de algum modo aos nossos. A Igreja tinha adversários poderosos e implacáveis. O sangue dos mártires corria às torrentes em toda a vastidão do Império Romano. Também hoje a Igreja tem inimigos poderosos. E, por toda parte, também os católicos verdadeiros (falo dos verdadeiramente verdadeiros) são perseguidos. É certo que os adversários de hoje, aquém da cortina de ferro, não são brutais como os de outrora. Perseguem com o sorriso hipócrita nos lábios, e a mão estendia para a colaboração dolosa. Os de além cortina de ferro são hipócritas quando tratam com o Ocidente. E brutais quando perseguem no Oriente. Hipocrisia ou brutalidade são acidentes. Em substância, o ódio é o mesmo.

Fabiano, cheio de veneração pelos mártires, começou seu Pontificado enviando por todo o Império sete diáconos e sete subdiáconos, para que recolhessem por toda a parte as atas dos martírios. Homem previdente, queria ele legar assim para toda a posteridade estas narrações de uma heroicidade sem igual, escritas pelo sangue dos homens por amor ao Sangue de Cristo. De sorte que até a consumação dos séculos servissem de adorno à Igreja.

Mas Fabiano não recebera em vão a visita da Pomba. O "homem da rua", presumivelmente pacato e mediano, se transformou em herói, e não apenas em colecionador e compilador de feitos heróicos de outros.

O imperador Felipe levava uma vida cheia de pecados. Sem embargo, quis assistir às vigílias da Páscoa e participar dos Santos Mistérios. Fabiano naturalmente, jamais ouvira falar de Ostpolitik, nem de Willy Brandt, de Mons. Casaroli ou de Kissinger. Feliz dele! Assim, em lugar de aceitar a presença escandalosa do pecador, apertar-lhe a mão estendida, ou oscular-lhe os pés — o arcebispo herético Meliton pode dar noticias desse estranho rito — impediu que Filipe transpusesse os umbrais sagrados enquanto não confessasse seus pecados, e não aceitasse de colocar-se no lugar reservado então aos pecadores penitentes dentro da Igreja. Filipe cedeu. E Fabiano, pela graça da Pomba, venceu assim a fera.

Feliz da Igreja quando é governada por varões que fortalecidos pela Pomba, não temem feras. — Ai!

Bem entendido, as feras não gostam deste trato. No 13º ano de seu Pontificado, o Imperador Décio mandou decapitar Fabiano. Este é o fim sinistro do "homem da rua" visitado pela Pomba, e transformado por Ela em um vencedor de feras.

-- Fim sinistro? — Consideremos o desfecho da história, tão e tão elevado, que a legenda áurea apenas o deixa discretamente subentendido. No momento em que a cabeça venerável de Fabiano foi cortada, uma corte rutilante de anjos, provindo das alturas excelsas onde reinam o Padre, o Filho e o Espírito Santo, baixou para receber a alma santíssima do novo mártir. Fabiano subiu, subiu, levado pelos Príncipes celestes. Mas, por mais que ele subisse a Santíssima Trindade parecia irremediavelmente inacessível. Depois de um glorioso itinerário através das Hierarquias infindáveis dos Anjos que o aclamavam e o enlevavam com o cântico de seu afeto. Fabiano, extasiado de felicidade e de glória, foi deposto pelos Anjos aos pés de Nossa Senhora. E assim como através de um telescópio os astros mais distantes parecem aproximar-se de nós assim também junto ao Coração de Maria, Fabiano se sentia inteiramente saciado pela presença de Deus. Como é doce e glorioso contemplar Deus face a face, aos pés do trono de Maria!

Nessas alturas celestes, terminou o passeio do "homem da rua", que fora pacatamente à procura de noticias sobre quem tinha sido eleito Papa. E até o fim do mundo haverá homens que digam: "São Fabiano, rogai por nós". Eu por exemplo. E tu também leitor.

"Rogai por nós". - Só isto - Rogai, São Fabiano, pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Para que, do seu vértice excelso até ao mais humilde de suas fileira ninguém pactue com os Filipes, nem procure maquiavélicas combinações com os Décios. O’, rogai pela Igreja, São Fabiano!