"Folha de S. Paulo", 20 de novembro de 1976
Em um fascículo de vinte páginas, a CNBB teve a péssima iniciativa de publicar, como separata do "Comunicado Mensal" de outubro pp., um documento de autoria de sua "Comissão Representativa". A tal documento, a Comissão — constituída por bispos — dá o título de "Comunicação Pastoral ao Povo de Deus". E dele declara que, quando o redigiram, pensaram "em vocês, gente simples, gente religiosa, gente das comunidades de base e dos grupos de reflexão, e lhes oferecemos esta reflexão pastoral" (pág. 3).
A "reflexão" oferecida a "grupos de reflexão" surpreende pela redundância. Mas passemos adiante.
Pois o português do documento é primário. A título de exemplo, registre-se esta frase: "Embora as diferenças econômicas não sejam pecado em si mesmas, é (sic) pecado as injustiças que as tiverem provocado" (pág. 16). Tal é o nível.
Porém, deixemos isto de lado. Dentro dos limites de um artigo de jornal, não nos podemos alongar em questões de forma, uma vez que as de fundo pululam nas vinte páginas do folheto (por distração, íamos escrevendo panfleto). E mesmo para comentar estas, o espaço é muito insuficiente.
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Como se sabe, a luta de classes é um dogma do marxismo. Deseja o leitor um exemplo do estímulo que a Comunicação Pastoral dá a essa luta? Leia a seguinte descrição em que alguns fragmentos de verdade vêm apresentados de cambulhada com as generalizações, as unilateralidades e os exageros mais graves e evidentes: "São os pobres, os indefesos que enchem as cadeias, as delegacias, onde as torturas são freqüentes em vítimas que aí se encontram sob a acusação de não trazerem documentos de identidade, ou presos durante o "arrastão" das batidas policiais. Somente pobres são acusados e presos por vadiagem" (pág. 9). Obviamente, a "gente simples", lendo isto, fica com a impressão difusa de que o Brasil contemporâneo é o inferno dos pobres honestos...
E que, além disso, é o paraíso dos ricos, os quais podem cometer crimes à vontade: "Para os poderosos, a situação é bem diferente. Há criminosos que não são punidos, porque protegidos pelo poder do dinheiro, pelo prestígio e pela influência na sociedade que acoberta e, portanto, é cúmplice deste tipo de injustiça" (págs. 9 e 10). — Que sociedade? — Evidentemente, a dos ricos, apontados assim à execração dos pobres.
Para acentuar essa execração, vem o fecho: "Esse duplo tratamento (para ricos e para pobres) parece sugerir que, em nossa sociedade, só, ou acima de tudo, o dinheiro, e não o ser gente, é fonte de direito" (pág. 10).
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Esta apresentação, clamorosamente distorcida, do atual quadro brasileiro, por enquanto arrancou um só protesto de fonte eclesiástica. Não me refiro aqui à grande figura deste bispo — D. Antônio de Castro Mayer — cuja simples presença nas fileiras do Episcopado nacional vale por um permanente protesto contra este e tantas outras enormidades. O sr. Cardeal Vicente Scherer declarou à imprensa que "a situação descrita no documento e as conclusões que dele se tiram não me parecem corresponder à realidade global do País, nem, principalmente, verificar-se no Rio Grande do Sul".
"Não me parecem" — diz tímida e indecisamente o Purpurado — quando dele se esperaria uma contestação categórica e corajosa de tantas enormidades. Mas, enfim, é melhor que nada.
Causa-me surpresa que, havendo três cotidianos de boa circulação em São Paulo publicado o texto quase integral da infeliz Comunicação Pastoral, uma saraivada de protestos não se tenha erguido contra esta. Pois é considerável o número de pessoas que ela fere dessa maneira.
— Fere? — Esta é a questão. Pois, pelo menos em princípio, se ferisse haveria reações.
Mas se não fere, como caiu baixo o prestígio da CNBB, a ponto de as mais graves acusações, quando dela partidas, deixarem indiferentes os acusados! Como também, aliás, deixaram insensível a "gente simples" que anda aí pelas ruas, simpática e pacata, sem se deixar picar pela mosca da demagogia episcopal.
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Não podemos deixar de transcrever mais um trecho típico desse demagogismo. Parece ele calculado expressamente para fazer ranger de ódio os que têm menos, contra os que têm mais: "Por que — perguntam os bispos — só alguns podem comer do bom e do melhor, e a maioria tem que dormir com fome? (...) Por que uns ganham 30, 50, 100 mil cruzeiros por mês, e tantos não fazem mais do que o salário mínimo? (...) Por que alguns podem ir passear e conhecer o mundo todo, e a maioria não pode tirar uma semana de férias e sair com a família?" (pág. 16). E daí o documento se põe a clamar contra o "sistema sócio-politico econômico" vigente, que gera "uma ordem social marcada por injustiças e propicia à violência" (pág. 18). Sempre o mesmo amálgama de alguns fragmentos de verdade com unilateralidades e exageros ou falsidades que constituem, em seu conjunto, uma clamorosa injustiça. Esta, por sua vez, que efeito produz senão o ódio de classes?
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Mas, para que falar de injustiça a respeito de um documento episcopal que, proclamando o Brasil uma terra em que os ricos torturam os pobres e protegem os criminosos endinheirados, afirma implicitamente que todo o nosso aparelho judiciário é lotado por cúmplices ou asseclas dessa opressão monstruosa?
Esta reflexão nos fez lembrar o famoso documento Comblin, do ano de 1968, em que o sacerdote belga, assessor e amigo de d. Helder, pedia a derrogação do nosso sistema judiciário.
Mas isto, por sua vez, nos faz pensar no que a Comunicação Pastoral diz do seu muito querido e admirado d. Helder, bem como dos bispos acusados de comunismo, e dos respectivos acusadores.
Mas já vai longe o artigo. Deixemos para outra vez essas misérias.