Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

  Bookmark and Share

26 de janeiro de 1975 

Portugal, o descolonizador colonizado

O noticiário internacional desta semana dá azo a que meçamos até suas últimas profundidades a crise espiritual contemporânea. De tão profundo, o mal espiritual acabou por atingir as próprias raízes da agilidade de espírito das massas, manipuladas pelos assim chamados "meios de comunicação social".

Se não, vejamos.

* * *

Desde o término da Segunda Guerra Mundial, não me lembro de uma só situação em que o mundo estivesse tão próximo de outro conflito.

Alegar-se-á, talvez, contra o que afirmo, a crise cubana de outubro de 1962. A admitir que tenha sido autêntica — e não mero show político intercalado adrede na pré-"détente" Kennedy-Kruchev — ela pôs em risco grave a paz, em uma área circunscrita, e à vista de um problema também circunscrito. Assim, resolvida a situação aguda, a paz tinha indefinidas possibilidades de durar. Tanto é que durou. A crise cubana foi algo como uma gravíssima crise de apendicite num organismo normal. Resolvida tal crise, as possibilidades de sobrevida são indefinidas.

Pelo contrário, hoje é todo o organismo das relações internacionais que se mostra estafado, desgastado, gravemente doente. A crise entre consumidores e produtores de petróleo tem obviamente uma amplitude que não comporta termo de comparação com o lance cubano de 1962; ela envolve, em seu conjunto, toda a economia ocidental, e assim repercute a fundo no mundo inteiro. A crise árabe-israelense, de área aliás bem ampla, transcende de muito a respectiva esfera geográfica, pois afeta as "diásporas" judaica e arábica no mundo inteiro. Acima de tudo, porém, nota-se um desgaste nas relações dos dois supergrandes, o autêntico (Estados Unidos) e o mítico (Rússia). Em termos mais precisos, os adversários da détente aquém e além da cortina de ferro deixam ver sua repulsa clara às tentativas de paz de Kissinger e de Brejnev. Entre "pombos" e "falcões" há, no plano supranacional, um tal desgaste, que uma guerra pode explodir de um momento para outro. Este perigo de guerra vem sendo, aliás, reconhecido explicitamente por várias figuras do cenário internacional. De sorte que, nas próximas semanas, o que se vai discutir — e talvez decidir — é a própria sobrevivência do mundo atual. — Como tudo isto sobrepuja em gravidade e extensão o arrufo Kennedy-Kruchev.

* * *

A julgar pelos noticiários dos jornais, nesta terrível encruzilhada, o destino do mundo pode depender de concessões ou endurecimentos em pontos que, nessa perspectiva, parecem secundários. Um pouco mais ou um pouco menos, em torno de uma linha-limite do preço do petróleo, ou igualmente em uma linha-limite no Golan ou no Sinai, e pode produzir-se a guerra.

E o mundo todo acompanha assim, entre displicente e bonachão, engajado e apavorado, uma partida tremendamente séria, que talvez chegue agora a seu lance decisivo.— Terrível, pungente, dramático, não é? — Sim, mas com aspectos de uma atroz palhaçada.

* * *

Com efeito, enquanto a diplomacia do Ocidente se apresta a discutir milímetros de terreno ou punhados de dólares com árabes, judeus e russos, e estes jogam a partida com todas as aparências de uma absoluta seriedade, a Rússia vai pura e simplesmente escamoteando Portugal.

Cada dia que passa afirma novos progressos na caminhada dos comunistas para o controle completo do poder em Lisboa. A respeito disso, ninguém se preocupa, ninguém discute, ninguém briga, na esfera internacional.

O disparate é tão grande, que se pergunta onde está a lucidez política dos que conduzem o Ocidente. Mas é preciso ampliar a pergunta. Esta aberração, as multidões também a vêm, e contudo parecem não incomodar-se com ela. Adormecidas pela fruição de um conforto aliás cada vez mais precário, voltadas apenas para seu interesse mais imediato, dominadas, pois, por uma crise espiritual sem precedentes, elas toleram tudo, contanto que o seu dia a dia não seja perturbado.

E assim vai sumindo aos poucos o glorioso e pequenino Portugal, colonizado pelo pior dos imperialismos, no momento em que — outro paradoxo — ele libera suas próprias colônias.

E não há quem proteste contra essa arbitrária e louca separação que se faz entre o caso português e a situação internacional.

Sirva pelo menos de protesto o presente artigo.