Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

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24 de novembro de 1974 

Estuporamento: um castigo de Deus?

As eleições continuam o grande tema da semana. Sem embargo, tratar destas não entra nas intenções a que me venho mantendo fiel desde o início de minha coluna na "Folha de São Paulo".

Com efeito, chamei a mim de só me pronunciar sobre assuntos em que – segundo o meu modo de ver – a opinião pública não estivesse suficientemente esclarecida. Procuro contribuir, desse modo, para complementar o grande esforço dos chamados meios de comunicação social.

Ora, a meu ver, a opinião pública nacional (que não se confunde necessariamente com a da grande imprensa) está avaliando bem satisfatoriamente o significado e o alcance das últimas eleições. Para o que, ela faz uso da sagacidade, a um tempo vivaz e plácida, que caracteriza a inteligência de nosso povo.

Dispensando-me, pois, de tratar do tema, abordarei outro assunto que, por ser universal, afeta também nosso País. É patente a atonia – misteriosa a ponto de se tornar desconcertante – da opinião pública de todo o Ocidente ( e incluo aqui acentuadamente a do Brasil) com referência ao perigo comunista. Assim, e fiel a meu propósito de complementaridade, quero tratar mais uma vez do assunto.

Convido, portanto, o leitor a se dar conta do que de incrível vai acontecendo, sob o rótulo de détente, entre os USA e a Rússia.

* * *

Leio na revista "Time" de 4 deste mês, que a potência supercapitalista, que é a América do Norte, está prestando à Rússia, para a edificação da economia comunista, numerosos serviços de porte gigantesco. Com 110 milhões de dólares fornecidos pelos americanos, já está iniciada em Moscou a construção da versão russa do "World Trade Center" de Manhattan: escritórios para 1200 empregados, mais 625 apartamentos, 600 quartos de hotel, restaurantes, piscina, sala de convenções e lojas. A Pepsicola inaugurou, em território soviético, uma fábrica que produz 200 mil garrafas diárias. A "Raymond Loewy e Snaith" ensina aos soviéticos como atualizar seus produtos, inclusive automóveis. E a Coca Cola estuda a construção de edifícios especiais, climatizados para o plantio de cereais. As tarifas americanas sobre importações russas serão reduzidas de 40 a 10%, ou menos.

Cooperando nesta tarefa de construir a economia comunista, na qual o próprio regime soviético havia fracassado, a Europa Ocidental mantém com os russos um comércio cujo montante é dez vezes maior que o dos norte-americanos. A Alemanha Ocidental planeja construir, em favor da potência que mantém escrava a Alemanha Oriental, uma usina de ação (?) que custará um bilhão de dólares. Os russos comem spaghetti e pão feitos em fábricas construídas pelos italianos: usam carros Fiat; vestem roupas feitas com fibras inglesas; em breve assistirão a espetáculos de TV a cores, para a difusão de propaganda comunista. A produtora é a França.

* * *

Bem entendido, tudo isso se dá mediante a concessão de créditos à Rússia. – E esta última, como corresponde? – Anunciando que não pagará os débitos que contraiu para com os EUA durante a II Guerra Mundial, se não receber a cláusula de "nação mais favorecida" no comércio com os americanos.

Assim, no comércio internacional de hoje, o meio de obter créditos é ser caloteiro.

Além disso, dos jornais desta semana se depreende que Moscou se pôs a intervir declaradamente na política interna dos EUA. Kissinger anunciou a Ford que os russos poderão não estabelecer acordos sobre armas estratégicas se o presidente não se candidatar em 1976. Os soviéticos poderão até chegar ao ponto de "assumir riscos no Oriente Médio" (ou seja, apertar a chantagem do petróleo) caso Ford não queira se candidatar. Obviamente, essa interferência aberta no processo eleitoral ianque é feita não só para que Ford se candidate, mas para amedrontar o eleitorado norte-americano, caso não reconduza Ford à Casa Branca.

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Tal é a détente de Kissinger.

A tanta prodigalidade dos americanos, seria impossível de parte dos russos responder com maior agressividade. Isto, de si, anuncia uma situação perigosa. Maior, porém, imensamente maior é o perigo inerente à atitude estuporada e apática da opinião mundial diante do fato.

Quer o leitor medir até que ponto chegou esse estuporamento? Procure comentar em torno de si as notícias, entretanto ultra-documentadas e ultra-significativas, reunidas neste artigo. O mais das vezes encontrará desinteresse, evasivas, ou pequenas explicações idiotas.

"Um número incontável de pessoas entre nós já não quer pensar no perigo comunista. E ipso facto o perigo progride às ocultas, na inconsciência geral. Esta atonia parece um castigo divino: "Quos vult Deus perdere, dementat prius", segundo o pensamento do velho Euripides. "Aqueles a quem Deus quer perder, começa por enlouquecê-los".