"Folha de S. Paulo", 29 de setembro de 1974

A bomba do Cardeal Eugênio Salles

O Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro é, por imprescritível imperativo da dignidade e do cargo, um defensor da Igreja militante. Cabe-lhe de direito um lugar proeminente, tanto na direção da batalha, como na primeira fila dos combatentes. Assim, tudo faria esperar que S. Emcia. o Cardeal D. Eugênio Salles se destacasse pela energia da repulsa à recente investida divorcista. Dele deveria vir a palavra de estímulo fogosa e empolgante que atraísse os fiéis para o bom combate. Dele deveriam seus diocesanos receber o ensinamento límpido que desfizesse a confusão manhosa espalhada pelo adversário.

Foi precisamente o contrário de tudo isto, a mensagem enviada aos cariocas por S. Emcia., nas ondas da "Voz do Pastor", e difundida depois para todo o País pelo "O Globo" de 31 de agosto p.p.

Dói-nos dizê-lo, mas as palavras de S. Emcia. trouxeram vantagem para a causa divorcista, tanto pela obscuridade do texto quanto pelo mal concatenado do pensamento.

Essas expressões podem parecer fortes. Mas é só para quem não tenha lido a mensagem de S. Emcia. Não dispondo de espaço para fazer aqui longas citações daquela mensagem, a fim de justificar quanto acabo de dizer. Mas ao leitor que não queira formar juízo sem conhecimento de causa, bastará procurar na Agência do "Globo" em São Paulo tal artigo, para se certificar a esse respeito. Se preferir, bastará que me peça o artigo, que terei o prazer (?!) de lhe enviar uma cópia pelo Correio.

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Restrinjo-me ao essencial dos essenciais.

Como todos sabem, segundo a doutrina católica o casamento cristão deve ser visto em dois aspectos: o contrato natural entre os cônjuges e o Sacramento instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo. E a indissolubilidade do matrimônio se funda não só no fato de ser este um Sacramento, como ainda na sua mera condição de contrato natural. De tal maneira que até mesmo o casamento entre pagãos – que não é Sacramento – ensina a Igreja que "foi instituído por Deus e implica num vínculo perpétuo, indissolúvel, que nenhuma lei civil pode romper". (Pio VI, Carta "Litteris tuis" ao Bispo de Eger, de 11-7-1789).

Assim, a introdução do divórcio na legislação civil jamais pode constituir um fato de âmbito meramente natural e humano. Ela fere a fundo a lei posta pelo próprio Deus, que nenhum legislador tem o direito de revogar.

Isto posto, não se pode ler sem o mais profundo desconcerto a seguinte afirmação do Emmo. Cardeal Salles: "A aceitação (do divórcio) pelo Estado é em si uma pura regulamentação de leis humanas". Como é óbvio, "pura" é aqui sinônimo de "mera". O que convida a pensar que, de si, a matéria pode ser tratada pelo Estado como pertencente exclusivamente ao domínio deste, isto é, o âmbito temporal.

A frase que se segue, ou é inteiramente sem sentido, ou contém um erro: a introdução do divórcio "não afeta, pois, o matrimônio, que é um sacramento indissolúvel. Um país que adote a dissolução desse vínculo julga apenas alguns efeitos legais, sociais do casamento". Sendo a indissolubilidade do vínculo um dos "efeitos" do casamento, parece entender-se por aí que o Estado pode impor a solubilidade desse vínculo no terreno "legal, social", desde que não pretenda tocar no Sacramento. De sorte que, no domínio subjetivo do foro íntimo de cada qual, o matrimônio permaneceria indissolúvel.

Tal interpretação parece confirmada pelas seguintes frases: "Mesmo onde o estado admite o divórcio, o matrimônio continua intacto, perante Deus e a consciência". Nessa perspectiva, o Prelado acrescenta: "Inalterado, perdura o valor da Palavra de Deus. "Não separe o homem o que Deus uniu (Mc. 10,9)".

A se dar a essas obscuras frases algum sentido, é impossível não reconhecer que ele se choca com o ensinamento de Pio VI: "Enganar-se-ia quem pensasse que o casamento, desde que não tenha caráter sacramental, não é senão um contrato puramente civil, e portanto suscetível de ser dissolvido pelo poder civil. Muito pelo contrário: pois, antes de tudo, o casamento não é um contrato civil, mas um contrato natural instituído e ratificado pelo direito divino, anteriormente a toda sociedade civil". (Pio VI, Carta citada).

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Conclusão: ou a mensagem de S. Emcia. tem um sentido oposto aos citados documentos pontifícios, ou não tem sentido nenhum. E, neste caso, é um amontoado de conceitos incongruentes, em cujo emaranhado vem afirmada, de passagem, apesar do que acabamos de ler, a ilegitimidade do divórcio e a necessidade de o combater. O efeito de um artigo deste gênero é aumentar a confusão no espírito dos fiéis. E isto no preciso momento em que o divorcismo procura, pela própria tática de confusão, alcançar a vitória.

De um modo ou doutro a mensagem foi uma bomba atirada por S. Emcia. nos arraiais... antidivorcistas.