Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

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2 de setembro de 1973 

Quem viver, verá 

Na mesma semana em que Kissinger, chegando ao posto de Secretário de Estado para as relações exteriores, recebeu de Nixon a consagração de sua política em prol da aproximação com o Kremlin, coincidiu que ao público do mundo inteiro chegou o gemido e a grave advertência de Sakharov. Nesse gemido do grande físico russo, não é apenas a dor de um homem que se exprime. Nele se exalam todos os prantos que a tirania comunista acumula por detrás da cortina de ferro. São milhões de seres que, pela voz de um representante qualificado, clamam para o Ocidente.

"O Ocidente": que significa isso? São as nações livres, mais numerosas na Europa e na América do que em outras partes do mundo. São os povos que constituem essa nações. São os homens que constituem esses povo. É a Sra., minha leitora. É o Sr. meu leitor. Sou eu.

Em outros termos, a responsabilidade coletiva do Ocidente por esse pranto resulta em responsabilidade pessoal para cada um de nós. E ninguém pode dormir tranqüilo no gozo de seu prestígio, suas riquezas e seus deleites, indiferente ao pedido de apoio e à advertência que a voz de Sakharov nos trouxe.

Tal indiferença nos sujeitaria à censura que desde já nos faz, no fundo da consciência, Nosso Senhor Jesus Cristo presente em cada filho da Rússia ou das nações cativas. E que Ele nos fará com severidade imensamente maior no dia do Juízo.

Sim, aqueles nossos irmãos que padecem de todas as necessidades do corpo e da alma, são cristãos. E o cristão é um outro Jesus Cristo: "Christianus alter Christus".

Se não atendermos a esses cristãos, nos dirá o Senhor:

"Tive fome e não me destes de comer;

tive sede e não me destes de beber;

era peregrino, e não me recolhestes;

estava nu e não me vestistes;

enfermo e no cárcere e não me visitastes (São Mateus XXV, 42 e 43).

* * *

Bem disse Sakharov que a Rússia é um imenso cárcere, com duas zonas de intensidade carcerária – se assim se pode dizer – distintas. Há os cárceres propriamente ditos, nos quais se exerce, em toda a sua plenitude, a ferocidade do Estado soviético. E depois a imensa periferia carcerária, constituída pela população incontável dos que trabalham para o Estado, no emprego designado pelo Estado, com salários arbitrados pelo Estado, em horários fixados pelo Estado, e aos quais tudo é proibido por esse Estado anti-Nação. Proibido até constituir família legítima e estável, economizar para prover o futuro dos seus, e prestar tranquilamente culto a Deus.

Que essa tirania tem como corolário a fome, dí-lo com eloquência uma notícia publicada pela imprensa nestes últimos dias. Com efeito, informa ela que os estoques mundiais de trigo apresentam carência em relação à população do mundo livre, por duas razões: uma é a pequena baixa de produção provocada por certas intempéries, e outra é o imenso desfalque praticado nessas reservas pelos fornecimentos feitos à Rússia.

Em outros termos, esse cárcere vive da esmola universal. E nele passam fome todos. Todos sim... excetuados naturalmente os felizes carcereiros!

* * *

O que pede Sakharov ao Ocidente? É o pedido mais espantoso da História. Pede-nos que não sejamos loucos. Que recusemos nosso apoio à aproximação com o mundo comunista. Pois essa aproximação mantém no governo da Rússia os déspotas que causam hoje a infelicidade desta, e amanhã causarão a nossa.

O raciocínio do cientista é o mais simples e cristalino que se possa imaginar. Cumulando de prestígio e de riquezas os sátrapas do Kremlin, mantê-los-emos no poder. A vantagem que, em contrapartida, eles nos prometem, está no cumprimento de acordos internacionais, dos quais imaginamos que resultará a paz.

Mas, observa Sakharov, essa paz repousa toda ela sobre o valor da palavra dada pelos contratantes comunistas. E que valor – acrescenta ele – pode ter a palavra de um governo que transformou o país num cárcere e o povo em escravos?

Em outros termos, como confiar em que tenha senso moral, para efeito de relações exteriores, um governo que não o tem para efeitos internos?

* * *

Obviamente, o comunismo se serve das riquezas que lhe pomos nas mãos, para desenvolver a grande ofensiva ideológica, psicológica, e por fim militar, da qual espera a conquista do Ocidente.

Em outras palavras, se Kissinger e seus congêneres não mudarem radicalmente de orientação, o incêndio que não teremos tido a coragem de extinguir na casa do vizinho queimará nossas casas, e por fim nossas carnes. Merecido castigo de um comodismo, de uma imprevidência, de uma displicência sem nome.

Eis como a Providência nos açoitará então, pelas próprias mãos daqueles a quem hoje cumulamos de favores.

* * *

Bem entendido, Sakharov é comunista, e como tal é ateu. Nas suas palavras não entra qualquer alusão à Providência.

Isto, entretanto, não constitui o menor impedimento – pobre Sakharov! – para que Deus intervenha na História. E que seja um autêntico castigo de Deus o jogo de fatos terrenos cujo desenrolar o cientista expôs e previu de modo tão emocionante.

Assim, um ateu acabou por dizer (sei lá com que segundas intenções) o que quereríamos ter ouvido dos lábios dos homens de Deus.

Mas enquanto os homens de Deus se calam, quase todos, a respeito dessas grandes verdades, e até batem palmas à política de Kissinger, Deus pode fazer o mundo ouvir, pela voz de um ateu, o enunciado do castigo que nos espera, se não mudarmos de via.

* * *

Sem negar o alcance providencial do gemido e da advertência de Sakharov, cabe uma pergunta: o próprio físico, que papel joga nesta situação? Ele, ateu, terá simplesmente profetizado como outrora a mula de Balaão? Ou na sua "profecia" entra uma segunda intenção a serviço do próprio comunismo? A mensagem do conhecido comunista servirá, porventura, de modo ainda não previsível pelo público, algum outro golpe de teatro dentro da política dos bons aliados do Kremlin e da Casa Branca?

Quem viver, verá...


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