Folha de S. Paulo,
31 de dezembro de 1972
Na
própria Espanha, os Cursilhos são caso
Causou-me viva sensação a leitura de quatro recortes da prestigiosa
revista espanhola “Vida Nueva", alusivos a Cursilhos de Cristandade. Em
que situação deixarão tais recortes aos que, em nosso País, sustentam
serem fruto da mera imaginação as inculpações feitas a esse movimento
por D. Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos?
Como
todos sabem, o cursilhismo nasceu na Espanha e ali tem sua direção
central e suprema. Pois precisamente daquele país nos chega a notícia de
que os Cursilhos vão dando ocasião - no plano doutrinário – a dúvidas,
discussões e polêmicas entre católicos. - Será que também na Espanha os
Cursilhos encontraram meios de ser injustamente atacados? - É muita
coincidência...
Sirva
isto de razão para sofrear, aqui no Brasil, alguns amigos superardorosos
dos Cursilhos, que protestam contra as argutas e bem documentadas
observações de D. Mayer como se fossem absurdos inaceitáveis,
verdadeiras blasfêmias. Em outros termos, enquanto na própria pátria
dos Cursilhos eles são frontalmente controvertidos, neste nosso Brasil
há quem os veja como animais sagrados em que não é lícito tocar.
Penso
que uma apresentação aos leitores, do que publica a tal respeito "Vida
Nueva" servirá para pôr água na fervura dos ambientes arditi do
cursilhismo.
* * *
O
recorte que tenho em mãos divulga uma carta à redação da revista,
assinada por "unos cursilhistas" anônimos da grande Arquidiocese de
Burgos.
Deixa
a missiva entrever, antes de tudo, que existem "tensões" em Burgos,
resultantes do propósito (de quem? do Arcebispo, Mons. Segundo Garcia de
Sierra y Méndez? - a carta não o diz, mas insinua) de estabelecer a
"prevalência da chamada linha tradicional" sobre a corrente inovadora.
Daí
resultaram - segundo os missivistas - "numerosas transformações na
Diocese, as quais parecem ter sido dirigidas em sentido tradicional, com
o ânimo aparente de apaziguar uma determinada linha doutrinária". Do
meio desta linguagem, cheia de subentendidos confusos, parece emergir a
afirmação de que o Arcebispo deu ouvidos às preocupações de teólogos ou
leigos fiéis à doutrina tradicional da Igreja, e em conseqüência tomou
providências para exterminar nos Cursilhos uns tantos abusos contrários
à boa tradição católica.
O que
segue confirma esta impressão. Com efeito, os autores da missiva narram
que os Cursilhos foram atingidos a fundo por várias medidas saneadoras
tomadas pelo Arcebispo. Dizem eles que a renovação ordenada na
Arquidiocese "custou primeiro, ao Movimento de Cursilhos, a eliminação,
por sucessivas transferências, de parte de sua equipe sacerdotal (por
coincidência, os mais notórios por sua tendência renovadora, segundo as
diretrizes do Vaticano II). E, por fim, de seu Diretor". E continuam,
gemendo, os missivistas: "Desde há dois meses esperamos em vão a
nomeação de quem o substitua".
O Sr.
Arcebispo de Burgos não julgou suficientes essas graves medidas. Os
cursilhistas prosseguem em sua narração: "Sobreveio depois a suspensão
das Escolas e Ultreyas, com grande desconcerto para esta cristandade;
por último, a proibição, pelo delegado episcopal, da celebração da
Eucaristia, por ser considerada ato coletivo e terem ficado suspensos
tais atos, não sabemos até quando".
O
mais grave está dito apenas de passagem, no fim da frase: a Arquidiocese
de Burgos julgou necessário suspender todos os atos coletivos do
movimento cursilhista...
Bem
entendido, o grupo de “unos cursilhistas” não aceita ser governado com
tão firme autoridade. Depois de afirmar que "foi grande o desconcerto
entre os cursilhistas ao se sentirem manejados desta maneira", eles
exclamam: "Não se toma em nenhuma conta o povo de Deus na hora dessas
decisões? Quando começaremos a viver a Igreja pós-conciliar, ou será que
isto é privilégio de algumas Dioceses?"
A
carta termina grosseiramente com a insinuação de que eventualmente o Sr.
Arcebispo de Burgos e a corrente tradicionalista que lhe dá apoio,
optaram por essas medidas com o intuito - que não poderia ser
qualificado senão de diabólico - de fazer o mal pelo mal. Dizem os
missivistas: "[...] estamos vivendo dias muito amargos. Vejo desilusão,
abandonos, e as crises de consciência, inclusive de fé. "Ferirei o
Pastor e se dispersarão as ovelhas". É isto que se pretendia? Suponho
que não. Porém, neste caso, é concebível que não se tenham previsto as
conseqüências? Por que negar-nos, e com que fim, uma liberdade de
reunião à qual temos direito como cristãos?"
Como
se vê, os missivistas "supõem" apenas que não se pretende trucidá-los
espiritualmente. Logo, consideram como admissível, em rigor de lógica,
que se queira fazê-lo! Pois uma suposição tem sempre caráter condicional
e admite implicitamente - se bem que com menor probabilidade - a
hipótese oposta.
Antes
de passar a outro comentário, permita-me o leitor uma pequena observação
de passagem. Uma das frases que acabei de citar diz: "Vejo desilusão,
etc.". O verbo ver está aí na primeira pessoa do singular. - Mas
então é um só cursilhista que escreveu a carta, assinando entretanto
"unos cursilhistas"? Por que esse manejo dentro da zona obscura do
anonimato?
Mas a
observação mais importante vem agora.
* * *
Chamo
a atenção dos meus leitores para uma peculiaridade singular da
argumentação destes (ou deste?), depois de uma série de lamentações
destinadas a atrair a compaixão dos leitores de "Vida Nueva" e de se
apresentar implicitamente o sr. Arcebispo de Burgos e os que o apoiam
como reacionários inquisidores no sentido mais pejorativo que o
anticlericalismo deu ao termo, a missiva desfechou, como vimos com uma
grave acusação contra o Prelado. A mais grave que se pode fazer. Pastor
que extermina suas ovelhas.
Porém, no seu longo e prolixo arrazoado a missiva deixou cautelosamente
de lado o ponto essencial.
Toda
pessoa acusada injustamente deve informar-se sobre o conteúdo da
acusação e mostrar que ela carece de provas; o mais é conversa fiada.
No
caso concreto, o Arcebispo parece considerar os Cursilhos como
gravemente infectados de erros. Ou ele tem razão ou não a tem. Se tem
razão os cursilhistas que efetivamente hajam sido conquistados para a
Igreja pelo famoso impacto cursilhista devem submeter-se filialmente, em
lugar de entrar em estranhas e censuráveis dúvidas sobre a Fé. Se o
Prelado não tem razão assiste-lhes o direito sagrado à legitima defesa.
Mas nesse caso estão absolutamente obrigados a esclarecer o público
sobre as acusações de que foram vitimas e o tornar patente que tais
acusações carecem de provas.
Precisamente isto os tais cursilhistas evitaram ruidosamente de fazer. E
para agir de modo tão singular devem ter lá suas razões.
O
fato é que neste espécime de apologética cursilhista notamos três
características:
a)
pânico de discutir o mérito do assunto;
b)
empenho em aliciar a simpatia da opinião pública colocando o movimento
cursilhista como vítima;
c)
contra-ofensiva arbitrária e difamatória, dirigida aos que ousam apontar
os erros do movimento.
* * *
E
encerro o artigo. No Brasil a contra-ofensiva dos pró-cursilhistas tem
tido exatamente as mesmas características:
a)
foge cuidadosamente de refutar os documentos citados por D. Antônio de
Castro Mayer em sua carta pastoral;
b)
apresenta o movimento como injustamente perseguido pelo Bispo de Campos;
c) e
implicitamente o aponta como um ferrabrás da ortodoxia pronto a todo
momento a tomar uma nuvem por Juno.
Digo
que esta é a atitude dos pró-cursilhistas porque os cursilhistas
propriamente ditos tem sido tão supercautos que quase nada disseram
sobre a matéria. É ao menos o que tem acontecido até esta tarde de
quinta-feira em que estou concluindo meu artigo.
Pelo
interior do País, nas caravanas da TFP, os jovens militantes estão
impressionados com a mesma ausência de argumentação dos cursilhistas.
Por vezes nossos militantes ouvem tão somente uma ameaça à guisa de
estribilho: "Vocês vão se arrepender".
-
Essa ameaça é um bluff? Ou mera explosão de mau humor? Ou talvez
constitui referência a alguma contra-campanha visando a TFP pelo aliás
já gasto sistema do estrondo publicitário?
Parece-me cedo para dar qualquer resposta a essas perguntas.