Folha de S. Paulo,
3 de dezembro de 1972
A
Pastoral sobre os Cursilhos
Por
certo, D. Antônio de Castro Mayer passará para a História da Igreja em
nosso século. Sua inteligência e sua cultura, seu arrojo em
circunstâncias críticas da boa causa, lho asseguram de sobejo. – Haverá
alguma faceta que, predominando sobre as demais, defina, para os
contemporâneos e para a posteridade, a figura do Bispo de Campos? –
Provavelmente. Uma delas poderia ser: "o Bispo das grandes Pastorais".
Com
efeito, vários dos trabalhos publicados por aquele Prelado têm sido
autênticos acontecimentos na vida interna da Igreja. A recente coletânea
"Por um Cristianismo Autêntico" (Editora Vera Cruz, São Paulo) em que
ele enfeixou suas onze principais obras deixa inteiramente esclarecido a
este respeito qualquer estudioso.
Mal
esgotada a primeira edição dessa coletânea, já se acha ela – sob certo
ponto de vista – superada. Pois o Bispo de Campos acaba de publicar nova
Carta Pastoral fadada a igualar ou até exceder em repercussão as mais
importantes dentre as anteriores. Trata-se da "Carta Pastoral sobre
Cursilhos de Cristandade", também dada a lume pela Editora Vera Cruz.
Não
pretendo aqui dar uma síntese do documento. Acho que ele deve ser lido e
estudado diretamente em seu texto integral. Limito-me, assim, a dizer
sobre a Carta Pastoral o suficiente para incitar o meu leitor a que a
leia.
* * *
Os
Cursilhos de Cristandade estão muito difundidos entre nós. Quem deseje
estar ao corrente da atualidade brasileira não pode deixar de
interessar-se por esse movimento.
Ora,
diz D. Mayer, as tendências doutrinárias que nele se fazem sentir são
heterogêneas: verdade e erro, bem e mal têm livre curso nas
publicações oficiais do movimento. Como é natural, ponderáveis
setores deste estão seriamente afetados pelo fato.
O
Bispo de Campos cita, em sua Pastoral, farta documentação.
O que
encontrou nessa ampla massa de documentos o lúcido teólogo? Dou aqui
alguns textos cursilhistas citados por D. Mayer. O leitor poderá assim
medir o verdadeiro alcance das tendências e dos erros que serpeiam em
certas áreas dos Cursilhos. E com isto se sentirá mais atraído a ler a
momentosa Pastoral.
* * *
Quando se encontra diante de uma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, de
um crucifixo por exemplo, ou de uma réplica do Santo Sudário de Turim,
qual o seu impulso, prezado leitor? Quando se acha diante de um
tabernáculo onde está o Ssmo. Sacramento, que movimentos de alma lhe
inspira sua Fé em Jesus Cristo, nosso Divino Redentor?
Obviamente, de adoração, de gratidão, de confiança sem limites e de
humildade profunda. Por isto, jamais lhe passará pela cabeça dirigir-se
a Ele como um homem de pouca compostura o faria a um indivíduo qualquer
que encontrasse pela rua. De O chamar de "Chefão" por exemplo. Pois o II
Encontro nacional de Secretariados Diocesanos de Cursilhos de
Cristandade no Brasil recomendou que nas visitas ao Santíssimo
Sacramento os cursilhistas vejam no Divino Salvador "o Cristo, nosso
"Chefão", nosso irmão mais velho, nosso grande amigo e companheiro"
(Pastoral, pág. 73). Em suma, um camaradão.
Que
lhe parece isto, leitor?
Objetará alguém, benevolamente, que talvez se trate apenas de uma
expressão infeliz, saída por acaso de alguma pena açodada. Então leia o
seguinte tópico do artigo "Meu papo com Cristo", escrito por um
cursilhista (Pastoral, págs. 73-74):
"Hoje
quero bater um papo com Cristo. Mas, um papo que não exija "cuca", que
não exija esforço maior do que o descanso absoluto que espero encontrar,
hoje e sempre, na minha própria fé N’Ele.
"Cristo está aqui ao meu lado, sentado na minha cama. Sua figura me
agrada logo: "super pra frente", calça lee azul marinho e túnica azul
clara. Nos pés, um par de tênis também azul e, ao redor do pescoço, uma
corrente dourada, onde vejo pendurada uma cruz. Da cabeça saltam,
pacificamente, cabelos claros e lisos que vão até os ombros. Como o meu
cristo é bárbaro! (...) Começo a falar.
"Olha, Cristo, fiz um montão de descobertas ultimamente, e a maior de
todas foi esta: amo Você (...). Você precisa ver a minha alegria ao
perceber que o meu "pecadão" se torna um "pecadinho" diante da potência
de perdão que Você é. E o que eu acho mais fabuloso nisso é que Você não
exige que a gente peça perdão: pelo arrependimento, basta a gente sentir
que errou e já se sente, também aceito por Você".
O que
mais?
Este
trato com Cristo não importa numa verdadeira subversão no domínio
transcendental e delicado da piedade?
* * *
Esse
sentido subversivo não se encontra só no terreno da piedade. Ele aflora
também no campo econômico-social. Das mais importantes na Pastoral de D.
Mayer é a Parte III, que trata de "Cursilhos e a subversão".
Limito-me a transcrever aqui, ligeiramente comentados, alguns dos
tópicos citados a tal propósito pela Carta Pastoral de D. Mayer.
As
"mudanças estruturais na América Latina devem ser rápidas, urgentes,
totais". A afirmação é do Pe. Edgar Beltran na importante revista
cursilhista “Trípode” (Pastoral, pág. 81). Ora, uma mudança total
implica na substituição de tudo. Assim, deveremos ter estruturas novas,
nas quais não sobreviva qualquer elemento das atuais. Dado que a
propriedade privada é um desses elementos, e dos mais marcantes, não
deve ela existir na ordem nova sonhada pelo referido sacerdote e
endossada pela revista cursilhista.
No
mesmo sentido se exprime o Sr. José Maria de Llanos em artigo da "Trípode"
intitulado "En que coinciden marxistas y cristianos?" (Pastoral, pág.
90). Para ele, a doutrina católica e a marxista coincidem em quatro
pontos: 1) O fundamento de uma nova estrutura, de uma nova humanidade, é
de ordem econômica; 2) A paz exige essa nova ordem, e passa pela
revolução; 3) A revolução poderá ser violenta, se não puder realizar-se
pacificamente; 4) "O regime de propriedade deverá ser transformado por
uma intervenção enérgica da autoridade pública, nacional e
internacional". Assim se aparentam a transformação marxista da
propriedade e a transformação desejada pelos cursilhistas...
Esses
textos são suficientes para despertar no leitor perspicaz a convicção de
que estranhas e perigosas tendências se fazem sentir em importantes
publicações cursilhistas. "Pelo dedo se conhece o gigante", sabem-no bem
as pessoas atiladas.
Qual
a amplitude real dessas tendências em Cursilhos? É uma pergunta que os
atilados não poderão deixar de querer esclarecer. Aconselho-os: leiam o
texto integral de D. Mayer e sua justa curiosidade será amplamente
satisfeita.
Mas o
mundo não é só dos atilados. Há também os que julgam parcialidade e
precipitação conhecer o gigante simplesmente pelo dedo. Precisam vê-lo
de corpo inteiro. Estes dirão, provavelmente, que as poucas citações que
aqui faço não bastam senão para demonstrar a existência de erros muito
esporádicos e excepcionais em Cursilhos. Para provar que esses erros
circulam em largas áreas do movimento seria preciso aduzir muito mais
documentos.
Claro
está que não posso, a esses documentos, transcrevê-los todos aqui. Mas
quem deseja ser verdadeiramente imparcial deve informar-se a fundo. Leia
pois a Carta Pastoral de D. Mayer e será esclarecido.
* * *
Para
um cursilhista, como agir diante do documento de D. Mayer? Se ele não é
solidário com os erros apontados pelo Bispo de Campos, deve ser muito
grato a este último, que veio esclarecê-lo.
Se é
solidário com esses erros, deve entrar em diálogo com o autor da Carta
Pastoral, dando argumentos por onde tente provar que o que D. Mayer
qualifica de erro é, pelo contrário, verdadeira doutrina católica.
Fora
disso, não vejo, para um cursilhista, qualquer saída.
A não
ser, naturalmente, que recorra ao diz-que-diz, a invectivas pessoais
contra o grande prelado, ou a detrações contra a TFP, que lhe está
difundindo a obra. Longe de mim dizer que cheguem até lá. Aliás, tal
tática nem lhes seria útil. Pois não poderia deixar de ser vista como
uma tentativa de fugir aos incômodos do diálogo doutrinário sereno, a
que a natureza do tema convida.