Folha de S. Paulo,
26 de novembro de 1972
Lições de um documento reservado
Transcrevo hoje, para o conhecimento dos leitores, uma nota reservada
existente no arquivo do Vaticano. Lendo-a, lhe ocorrerá desde logo
que o documento contém uma versão resumida de uma exposição feita pelo
Conselheiro Presidencial Henry Kisinger a alguma personalidade vaticana,
por exemplo o Cardeal Villot, Secretário de Estado da Santa Sé.
"No tocante à Rússia,
o representante do presidente norte-americano declarou ser pensamento do
seu governo que constitui dever de todos empenhar-se em modificar as
disposições da Rússia, de modo a fazer dela um membro da família das
nações, em lugar de a manter isolada. Na reconstrução de após-guerra, a
Rússia isolada constitui, de imediato, um poderoso inimigo, que ameaça a
paz que todos devemos desejar durável. Há presentemente numerosas
indicações - disse o diplomata americano - de que estão sendo alcançados
progressos nessa direção; em Washington há uma confiança crescente de
que a Rússia se tornará um auxiliar útil (...) e de que os traços gerais
inaceitáveis do sistema russo estão em vias de desaparecimento. O
comunismo, enquanto tal, vai deixando de existir; o princípio da
propriedade privada vai sendo novamente admitido, pelo menos em parte;
se bem que atualmente não haja lá liberdade de Religião, a atitude (das
autoridades) face à Religião vai mudando consideravelmente. O diplomata
acentuou que o Governo dos Estados Unidos trabalha continuadamente para
obter a modificação da política soviética face à Religião (...). É
geralmente admitido em Washington que consideráveis progressos têm sido
feitos neste sentido (...). Ele voltou a insistir que o aspecto mais
importante da situação consiste na necessidade de fazer todo o possível
para transformar a Rússia, de inimigo isolado, em amigo.”
* * *
"Por
que publicar uma condensação de conceitos e de esperanças tão banais?",
perguntará o leitor. "Não li nos jornais que Kissinger teve um encontro
com Mons. Villot ou qualquer outra personalidade vaticana. Mas, a ter
tido, só poderá lhe ter dito o que está nesta nota. Ela contém todas as
razões imagináveis para justificar, aos olhos da Santa Sé, a cessação da
guerra fria, mediante a formação do eixo Washington-Moscou. E resume as
ilusões e as esperanças de quantos, pelo mundo afora, aplaudem a
política de Nixon".
Concordo com o leitor. Não me consta que Kissinger tenha dito tudo
quanto está nessa nota. Entretanto, é óbvio que o retrata de corpo
inteiro: homem persuadido de todos os mitos lançados pela propaganda
soviética, confiante na mitigação do regime comunista, na restauração,
pelo menos parcial, da propriedade privada e da liberdade de religião -
homem certo de que esse processo pode ser acelerado mediante concessões
de vulto, ou comprometido pela manutenção do isolamento em que a Rússia
tem estado.
É
explicável que o leitor me pergunte, pois, qual o interesse em
reproduzir aqui um documento que nada acrescenta de novo ao que já se
sabe, que, em ultima análise, nos mostra o que já se conhece: o enorme
bluff, a servir de motivação para um erro catastrófico do governo
ianque.
* * *
Entretanto, caro leitor, insisto em afirmar que o documento é
interessantíssimo. Para prová-lo, preciso apenas aduzir aqui uns poucos
esclarecimentos.
Reconsidere o início do artigo, e verá que eu tive o cuidado de não
afirmar ser esta nota o resumo de uma conversa entre o Conselheiro
Presidencial e algum dignitário vaticano. Limitei-me a dizer que seria
essa a impressão que ocorreria ao espírito do leitor.
De
fato, essa nota se encontra no arquivo do Vaticano (A.A.S.
6798/42, orig. datil.), mas ela data precisamente de trinta anos e
contém o resumo de uma exposição feita pelo Sr. Myron Taylor,
então representante pessoal de Roosevelt, a Mons. G.B. Montini, então
substituto da Secretaria de Estado do Vaticano, sobre "a guerra e o
após-guerra na Europa". Está ela datada de 22 de setembro de 1942, e
consta do livro "Pie XII devant l’Histoire" de Mons.
Georges Roche e Philippe Saint-Germain, Edit. Robert Laffont, Paris, pag.
495.
Transcrevi aqui só as partes principais. E onde no original se lê "o Sr.
Myron Taylor", escrevi "o representante do presidente norte-americano",
ou fórmula congênere.
Como
se vê pela data, a Rússia desenvolvia, naquele tempo, uma ação junto
ao então Presidente Franklin D. Roosevelt, a fim de o preparar para as
imensas e catastróficas capitulações de Yalta.
Se
através do Chefe de Estado norte-americano, muitos homens públicos do
Novo e Velho Mundo não tivessem sido induzidos a crer no declínio da
ideologia comunista, e na perspectiva de uma mitigação - quer no campo
sócio-econômico, quer no religioso - do regime soviético, teria sido
impossível a Moscou fazer suas imensas conquistas de após-guerra.
Obtidas estas conquistas, verificou-se que todas as perspectivas de
modificação interna na Rússia, com que Stalin embalava Roosevelt, não
passavam de imenso bluff.
Mas
todos esses fatos já estão bastante esquecidos. E os sucessores de
Stalin se põem, em nossos dias, a fazer aos continuadores de Roosevelt,
os mesmos acenos e as mesmas mentiras de há trinta anos atrás.
Por
sua vez, os continuadores de Roosevelt se põem a desenvolver a mesma
política de capitulação que mereceu a Roosevelt a severa condenação da
História.
A
opera bufa - ou melhor, a tragédia - se repete. Ninguém
aprendeu com a amarga experiência de três décadas.
* * *
Esta
reflexão tem especial utilidade para nossos dias.
No
pelourinho da História, Roosevelt ficou só, com a pequena equipe de
colaboradores, entre os quais o sinistro Marshall, que empurrou a China
para o comunismo.
Nixon e Kissinger, porém, não ficarão sós.
O número de seus comparsas é imenso! Entre outros, ficará com ele, no
pelourinho, o micro Nixon teuto, Willy Brandt. Lutando na Espanha ao
lado dos comunistas russos em 1935, o chanceler alemão lhes prestou,
então, serviços incomparavelmente menores do que os de sua presente "Ostpolitik".
Na
esfera internacional, o acontecimento mais considerável nesta semana foi
a pequena mas lamentável vitória alcançada pela coligação governamental
nas eleições alemãs. No círculo da Europa central, Brandt é o
símbolo do mesmo entreguismo que a dupla Nixon-Kissinger representa na
esfera mundial. E o dia das capitulações incomparavelmente mais
trágicas que os da Yalta vai chegando.
Não
há argumentação que demova os "capitulantes" atuais de sua política de
suicídio.
Mas
muito se conseguirá para lhes circunscrever a ação, esclarecendo a
opinião pública sobre a fundamental insinceridade das promessas
soviéticas.
Para
tal fim, creio que poucos documentos são tão concludentes quanto este
que transcrevi, em que se vê, há 30 anos atrás, a Rússia
despertar as mesmas esperanças, tramar a mesma política de mentiras,
anestesiar do mesmo modo a outra parte, e fazer por fim... exatamente o
contrário do que prometeu.