Folha de S. Paulo,
19 de novembro de 1972
Silenciosos do Ocidente
Falando a toda a nação pouco antes de encerrar sua campanha, Nixon expôs
em dez pontos o seu programa.
Resumo-o aqui. Imagine o leitor o efeito de cada um dos itens dessa
síntese sobre o eleitorado centrista e conservador:
1-
Paz com o mundo, num mundo de paz. Instauração de uma era de amizade e
cooperação entre todos os povos. União da humanidade numa nova aliança
contra os seus inimigos comuns: a miséria, a adversidade e a
enfermidade; 2- Abolição da discriminação entre raças, sexos e
religiões; 3- Saúde: eliminação da fome, das enfermidades e do abuso de
drogas; 4- Boas escolas; 5- Prosperidade: impostos equitativos, pleno
emprego sem inflação; 6- Restauração e proteção das cidades e do meio
ambiente; 7- Abolição progressiva da criminalidade e da corrupção; 8-
Liberdade e autodeterminação; governo mais próximo do povo; 9-
Pluralismo e abertura; 10- Família forte e patriotismo desinibido.
Esse
elenco de metas parece feito para deslumbrar o conservantismo centrista.
Um "staff" de exímios especialistas da propaganda não poderia imaginar
nada de mais capaz de atrair.
A um
tal programa, o presidente-candidato somava todo o prestígio inerente ao
seu alto cargo, e as facilidades que o Poder confere naturalmente a quem
o tem em mãos.
Era,
pois, natural que ele levasse às urnas todos ou quase todos os eleitores
da corrente cujos votos procurava conquistar.
* * *
Nos
Estados Unidos, o que se poderia chamar de direita tem pouco peso
eleitoral. Além do centro, como grande força política, existe só a
esquerda.
Ora,
em matéria de esquerda, McGovern era um candidato absolutamente tão
atraente quanto o era Nixon para o centro. Dispenso-me de reproduzir
aqui o seu programa, mesmo porque para os esquerdistas, aventureiros
quase por definição, os programas têm muito menos importância do que
para a sisudez centrista. A votação do eleitorado esquerdista é
atraída na medida da dosagem de comunismo que ele fareja em um
candidato. Grosso modo, McGovern calculara bem essa dosagem, pois - se é
verdade que ela foi um pouco intensa demais para atrair centristas
incautos - tinha entretanto suficiente densidade para empolgar os
esquerdistas. Seria, pois, natural que McGovern tivesse levado às urnas
a esquerda inteira.
* * *
Em
síntese, quase todo o corpo eleitoral deveria ter votado.
Isto
era tanto mais plausível quanto a última campanha eleitoral foi a mais
cara da história americana: custou 400 milhões de cruzeiros. A
propaganda foi, pois, espetacular.
Enfim, nada faltou para arrastar para o grande e pacífico prélio, a
nação inteira.
Nada,
realmente, exceto o interesse da massa eleitoral.
Ora,
sendo de cerca de 110 milhões o total dos eleitores inscritos, e dado
que só 77 milhões deles votaram (estes dados foram obtidos no Serviço de
informações dos Estados Unidos, USIS). Conclui-se que aproximadamente
30% dos eleitores deixaram de votar!
Mais
ainda, sendo de 140 milhões, segundo a imprensa o número de americanos
em idade de votar, e havendo só 110 milhões de eleitores inscritos,
deduz-se que 30 milhões de americanos nem sequer se inscreveram. Ainda
que as causas desta abstenção tenham sido múltiplas, a diferença indica
uma quota apreciável de desinteresse.
Isto
posto, pergunto ao meu leitor: como explicar essa dupla faixa de
desinteresse?
* * *
Obviamente porque nas camadas profundas e silenciosas da grande massa
americana se foi processando uma transformação que os políticos e os
técnicos não conseguiram perceber ou interpretar corretamente. A
propaganda se vai desgastando. A medida que se torna omnipresente,
ininterrupta e super excitante. Os políticos se desgastaram ainda mais
do que a propaganda. Um exemplo: quando a campanha eleitoral atingia o
auge, emissoras de televisão da Califórnia interromperam sua programação
normal para projetar uma entrevista de Kissinger sobre a guerra do
Vietnã. Os protestos telefônicos mostraram tanto desinteresse, que as
emissoras tiveram de cortar ato contínuo a entrevista: nem Kissinger
interessa mais!
* * *
No
âmago da sociedade norte-americana, agitada, ruidosa e caótica, se
vai formando um bolsão de desinteresse. Bolsão imenso, que já
afastou das urnas impressionante massa de eleitores. Desinteresse
silencioso, que só pela omissão revelou sua força.
Qual a causa desse fenômeno?
Digamos, antes de mais nada, que ele não constitui um fenômeno
exclusivamente norte-americano. Seu porte é universal. Também no
Brasil pode-se senti-lo.
Por
isso mesmo, seria vão procurar para ele uma explicação local. Só uma
causa universal poderia engendrá-lo.
Auscultando esse silêncio
apático como ele se apresenta em nosso País, e tomando-o como uma
amostra do silencio universal, julgo poder alinhar aqui alguns
fatores explicativos.
Antes de tudo, um imenso cansaço.
A todo momento, o homem recebe hoje novidades que o deslumbram ou o
assustam, mas em todo caso o fazem vibrar. A todo momento,
também, se lhe mete ouvido a dentro, uma música ou um slogan. A
qualquer propósito ele se defronta com uma estatística ou um
questionário, que lhe revela a existência de um problema novo, e
sobre o qual se lhe pede que opine. A todo custo quer-se obrigá-lo a
"participar" de tudo. O homem moderno é assim solicitado para uma
vida coletiva intensíssima. Dócil, ele vibra com todas as notícias,
ouve todas as musicas, ingere os slogans, examina todas as estatísticas
e se preocupa com todos os problemas.
Mas
das profundidades de sua alma nasce, pari passu, uma sensação
de inadaptação, de angústia e de vazio. É que, antes de ser
matéria-prima para propaganda, sociológica ou política, o homem é
um ente racional e livre, que leva em si um mundo interior. Este mundo
interior, ou ele o cultiva com amor e cuidado, ou se transforma numa
jungle interna, da qual saltam os mais inesperados fantasmas. Privado,
pela excessiva "participação", de seu centro de gravidade interior e
pessoal, o homem entra em desvario.
Para defender-se, ele se desinteressa de tudo. Entra em silêncio. E se
abstém.
Em
seu conjunto, esses silenciosos são, na sociedade do Ocidente, algo
de vagamente parecido com a Igreja do Silêncio no mundo comunista.
Não porque sejam reduzidos ao silêncio pela violência policial, mas
porque ninguém os percebe, ninguém os entende, ninguém os representa. Só
o bulício tem cidadania. Postos à margem, eles se calam.
Porém
não é só. Há nos silenciosos do Ocidente uma imensa
perplexidade. A farândola das ideologias enlouquecidas, a dança
endiabrada das contradições estrondosas, do despudor agressivo, das
indumentárias delirantes, tudo isto suscita em numerosas pessoas uma
pergunta, que, por não ser "moderna", poucos ousam externar, mas que
atormenta a muitos: no que dará tudo isto? A que cataclismos vamos sendo
arrastados?
O
silencioso não é apenas um cansado.
Ele é um perplexo. Ele é um desnorteado.
-
Está ele à margem da vida?
-
Opino que não. Ele representa o que resta de bom senso na humanidade.
É a vida que está à margem do bom senso.
Tal
é, a meu ver, o significado mais profundo deste tão marcante avanço do
silêncio no Ocidente...