Folha de S. Paulo,
29 de outubro de 1972
Piparote salvador
Infelizmente não foram muito claras as notícias dadas pela imprensa
diária sobre recente debate na ONU. Mas, em síntese, parece tratar-se do
seguinte:
a)
como se sabe, utilizando os satélites para a transmissão de matérias
televisionadas, pode um Estado fazer chegar noticiários ou comentários a
qualquer parte da terra. E não existem meios técnicos para que outro
país se defenda contra a transmissão.
b) a
Rússia propôs aos demais participantes das Nações Unidas uma
regulamentação internacional do uso dos satélites para efeitos de TV.
Pois do contrário ela destruiria o satélite para impedir que servisse de
instrumento de propaganda ideológica anticomunista em território dela.
Este gesto, diga-se de passagem, não porá mal à vontade os
filocomunistas que apregoam por todo o mundo a necessidade de derrubar
as barreiras ideológicas.
À
vista dessa atitude insólita do Kremlin, os EUA protestaram, defendendo
o princípio da liberdade total das comunicações. E o assunto, depois de
percorrer as comissões competentes, irá ter no plenário da ONU.
* * *
Como
se vê, há no episódio uma confrontação entre duas ideologias opostas.
Segundo a doutrina liberal, qualquer limitação da expressão do
pensamento é contrária aos direitos do homem. Segundo a doutrina
marxista, nenhuma liberdade é lícita se prejudica os interesses da
revolução proletária.
Naturalmente, sobre o importante assunto terão de opinar outras nações,
e entre elas o Brasil. - Que esperar de nossa diplomacia a tal respeito?
- Que
tomasse posição inteiramente concorde com a dos EUA? Tal me pareceria
insustentável. Bem entendida e judiciosamente utilizada, a liberdade
é um dom inestimável de Deus. Porém, a liberdade absoluta, que inclui o
direito de difundir tudo, e até a pornografia, é absurda.
Pelas
notícias, nosso embaixador na ONU, Sr. Sérgio Armando Frazão, não
aceitou a atitude norte-americana, e concordou, neste sentido, com a
posição russa, segundo a qual - pelo menos em princípio - a liberdade de
TV via satélite deve ser regulamentada.
Até
aí, em tese, nada a estranhar.
O
que, entretanto, os despachos telegráficos não deixam claro, é se o
Brasil já indicou segundo que princípio deve ser feita a regulamentação.
A
matéria é extremamente melindrosa, e pelo noticiário parece mais
provável que nosso país ainda não se haja pronunciado a respeito.
Por
isso mesmo, parece-me importante lembrar um aspecto que deve ser tomado
em toda a consideração quando nosso País tiver que emitir seu pensamento
e dar seu voto.
O
regime comunista - enquanto ateu - é incompatível com as instituições da
família e da propriedade privada e ipso facto contrário a toda a
ordem natural. Imposta por uma camarilha heterogênea de fanáticos e de
oportunistas, leva ele todos os povos das assim chamadas repúblicas
soviéticas a um regime de verdadeira catástrofe material e moral.
Quanto à catástrofe material, ela é hoje em dia evidente, e se apresenta
como um corolário inevitável da estatização. Basta pensar no insucesso
agrícola espetacular da Rússia, na fome crônica dos países comunistas,
nas panelas vazias que tinem no Chile, e no malogro agrário de Cuba.
Tenho em mãos - é mais um exemplo - uma notícia da revista francesa "Catacombes",
de agosto de 72, sobre a regressão da economia estatizada da Argélia. À
era florescente do tempo da "dominação" francesa, vai sucedendo a
penúria...
Quanto à catástrofe moral, é notório que um sismo de inconformidade
ideológica sacode de ponta a ponta o imenso território soviético. Depois
de 55 anos de esforço para persuadir o povo, este se manifesta mais
infenso do que nunca à ideologia do Kremlin.
Está
na natureza das coisas que a camarilha no poder, não podendo então
manter-se senão pela violência, necessite cada vez mais apoiar-se na
violência. A chamada União Soviética irá sendo cada vez mais uma prisão
sombria, um inferno em vida.
Ora,
o mundo não pode assistir indiferente a essa trágica evolução. No
século XIX as nações européias intervieram legitimamente nos Estados do
Oriente para impor a abolição de leis contrárias à ordem natural - a
queima das viúvas por exemplo. Não pode o século XX desinteressar-se
diante do fato de que no imenso Império comunista, que vai do Elba
até as portas de Saigon, se pratiquem crimes indiscutivelmente mais
numerosos e de maior gravidade. Pois impor a povos inteiros, pela
violência, uma estrutura aberrante em tudo da ordem natural é crime
muito mais grave do que os praticados outrora por caciques, sultões ou
rajás, em suas respectivas dominações.
-
Será que no século XX, o poder da civilização decaiu tanto que tem de
renunciar hoje à tarefa vitoriosamente realizada no século XIX? -
Não parece.
É bem
verdade que o Ocidente está em declínio: ainda mais o está o mundo
comunista. Bem ou mal, nosso regime vai sobrevivendo. Quanto ao
regime soviético, um piparote dado com jeito e força o pode derrubar.
Dar esse piparote é para o mundo livre um indeclinável dever.
* * *
Ora,
tal piparote salvador bem pode ser a livre transmissão de notícias e
comentários de televisão via satélite. Imaginemos que as massas
sob dominação soviética, trabalhadas por profundo descontentamento,
sejam informadas amplamente sobre o contraste entre as condições de vida
no Oriente e no Ocidente. Admitamos que elas sejam sobretudo
atendidas na sua imensa fome de Deus por um serviço de televisão que
lhes apresente adequadamente as verdades da Religião. Tudo leva a
crer que nesse caso, um imenso movimento de opinião só pode delinear,
diante de cuja valia os carrascos do Kremlin desapareçam, pura e
simplesmente do cenário político.
Temos
o direito de recuar diante de tal tarefa?
Não é
aqui o momento de fixar a fórmula pela qual sem cair na aceitação da
absoluta liberdade de televisão o Ocidente também não aceite a proposta
russa, que tornaria impraticável o piparote salvador.
Entretanto, uma reflexão me vem à mente.
Tem-se dito que está raiando na História a era da América Latina
e, pois, também de nosso Brasil. Têm-se dito ademais que essa era deve
inaugurar um novo estilo de grandeza no campo internacional. Uma
grandeza cristã que não importe em agressão, nem domínio, mas na
primazia de todos os bens do espírito e da matéria, larga e
generosamente participados pelos demais povos da terra.
Seria
bem esta uma ocasião para iniciar tal estilo de grandeza. Tudo faz
recear que o desacordo entre as potências do eixo Washington - Moscou
sobre o controle da TV Satélite passará pelo processo já clássico de
exigências russas e concessões americanas, desfechando numa capitulação
de Washington. Ou seja, no cerceamento tal da liberdade de televisão,
que os povos comunistas não cheguem a se beneficiar do piparote
salvador.
Será
então o momento de nos opormos ao desalmado arranjo. Qual a fórmula que
a família latino-americana (excetuados o Chile e Cuba) devem apresentar?
Volto
a dizer, de um modo inteiramente preciso não sei, mas ao Itamaraty não
faltam tradição, classe, lucidez e cultura para a elaborar em termos de
ser aceito pelas nações irmãs.
A
apresentação de tal fórmula abrirá, para além da cortina de ferro, uma
nova era. Ela será pois uma linda clarinada anunciando a presença
vitoriosa da América Latina nos assuntos mundiais.
E dará a prova de
nossa grandeza.
Grandeza corajosa. Grandeza benfazeja. Grandeza cristã!