Folha de S. Paulo,
15 de outubro de 1972
Os "Kerenskys"
argentinos
Quanto mais ler o noticiário referente aos acontecimentos em curso na
Argentina, tanto menos o público os compreenderá. Tantas são as
contradições que espoucam, a todo momento, na vida pública do grande
país irmão, que deixam aturdido qualquer observador mediano.
E
isto não só no Brasil e nos demais países da extensa família
ibero-americana. Na própria Argentina, poucos há - fora da camarilha dos
políticos profissionais, com farda ou sem farda - que entendem o que se
passa.
Entretanto, o meio para decifrar esse enigma, ou melhor, essa penca de
enigmas, está ao alcance de todos. É um livro, um manifesto. Ao longo de
muitas semanas, viam-se grupos de jovens que o apregoavam e vendiam
pelas ruas centrais de Buenos Aires, ora discursando do alto de barricas
que lhes serviam de tribunas improvisadas, ora servindo-se de megafones
possantes. Esses jovens, já o terá adivinhado o leitor, vestiam paletó e
gravata, usavam rubras capas marcadas por um leão dourado. Eram os
valorosos militantes da Sociedade Argentina de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade.
Da
sensibilidade do público a tal propaganda, fala eloqüentemente um dado.
O livro alcançou em apenas 60 dias duas edições com a impressionante
tiragem de dez mil exemplares. E uma terceira edição dele já está sendo
preparada.
Dado
o primeiro brado em Buenos Aires estendeu-se a campanha por todo o país.
Em Cordoba, em Tucuman, em Rosário, em Santa Fé, em Mendoza e tantos
outros lugares foi então largamente difundido, pelos jovens da TFP, o
livro-manifesto. E por toda a parte, mesmo na Cordoba vermelha, os
peronistas duramente alvejados, não ousaram a menor reação. Um deles
deixou escapar a explicação dessa inércia tão contrastante com a
habitual agressividade justicialista: contra tão acertada propaganda -
disse - única tentativa de reação consiste em deixar a TFP bradar no
vácuo. Pueril ilusão... Como se pudesse ser de vácuo o ambiente criado,
em grandes cidades modernas, por uma propaganda original e atualizada,
que repercute fatalmente em toda a população!
O
livro-manifesto da TFP argentina se deve ao claro talento e à cultura
invulgar do jovem presidente do Conselho Nacional daquela entidade sr.
Cosme Beccar Varela Filho.
Seu
título, "Os Kerenskys argentinos", já de si diz muito. Ele põe a nu que
uma equipe de socialistas argentinos está desempenhando em sua pátria, a
mesma missão inglória da qual se incumbiu, no Chile, Eduardo Frei.
Tarefa inglória sim, e sinistra, que meu jovem e inesquecível amigo
Fábio Vidigal Xavier da Silveira estigmatizou tão bem, carimbando por
todo o sempre, na fronte de Frei, o epíteto de "Kerensky" chileno.
Nas
sedes da TFP em todo o Brasil podem as pessoas especialmente
interessadas em política argentina encontrar a obra fundamental de Cosme
Beccar Varela Filho.
Porém, os assuntos argentinos da gravidade deste não interessam apenas a
grupos reduzidos de "experts". Pela sua natural conexão com a vida de
nosso País, sobre eles devem ter uma clara idéia todos os brasileiros
cultos.
Assim, resolvi apresentar aos leitores da Folha um resumo do que
pensa e sente, face ao drama platino, a TFP irmã; a manobra que ela
denuncia, bem como o programa positivo que ela apresenta.
* * *
Em
razão da profundidade e da coerência de seu conteúdo, "Os Kerenskys
argentinos" pode ser construído sobre um esquema de simplicidade
magistral.
Começa a obra por focalizar os aspectos contraditórios com que a
situação argentina se apresenta aos olhos do público. Diante da crise
conjunta do sistema político e do regime sócio-econômico, a figura
demagógica de Perón assoma num horizonte já carregado pelas fumaças e
pelo vozerio dos atentados terroristas. O perigo da esquerdização
radical se põe à vista de todos. E a maior ou menor gravidade desse
perigo passa a ser a questão central do momento.
-
Pode uma nação católica, naturalmente conservadora e composta por um
povo inteligente e valoroso, cair em mãos do comunismo?
Muitos crêem isso impossível, outros o reputam inevitável, e a grande
parte da opinião pública admite ambas as coisas ao mesmo tempo.
Diante de situação tão ambígua, todas as surpresas são possíveis,
especialmente as piores. E o trabalho positivo a ser realizado mais
imediatamente consiste em desfazer a ambigüidade, isto, por sua vez, só
se consegue mediante cabal explicação dos fatos.
Tal
explicação é a um tempo simples e subtil. A confusão reinante na
Argentina não é casual. Cria ela ambientes para o desenrolar de um
processo visando conduzir o país irmão ao socialismo populista. A meta
do processo é a instauração de um governo esquerdista moderado: muito
esquerdista e pouco moderado.
Esse
processo - que, graças à confusão, se realiza a não sabendas do grande
público - é a obra de uma minoria revolucionária constituída por "sapos"
da alta finança, por clérigos esquerdistas, homens de imprensa, figuras
do governo e da "inteligentzia", bem como por políticos profissionais. A
verdadeira força propulsora dele procede, assim, de cima para baixo. E
não de baixo para cima, pois a robusta maioria dos argentinos não quer
saber do socialismo.
Duas
vozes eminentes se ergueram, há pouco, para atestar a suma gravidade do
perigo em que, nestas condições, se encontram o país. O povo pode ouvir
o pronunciamento do ilustre arcebispo de Buenos Aires. Cardeal Caggiano.
A outra voz, silenciou-a o crime. Foi a do General Juan Carlos Sanchez,
que o terrorismo assassinou.
Essa
revolução de cima para baixo encontra diante de si duas vias de acesso
para a vitória:
a) A
via eleitoral a qual, mediante um "gran acuerdo nacional" entre todas as
forças políticas, inclusive o peronismo, imponha ao país um candidato
único e um programa socialista;
b) A
via de um golpe militar nacionalista, caso o êxito eleitoral se averigúe
muito duvidoso.
Até o
momento está sendo percorrida a primeira via. É a análise dela que mais
especialmente interessa.
Fundamentalmente se uma minoria desejosa de ganhar uma eleição não
consegue persuadir a maioria só tem um meio para chegar ao poder. É
desorientar a maioria produzindo nela a perplexidade, a confusão e a
divisão.
* * *
A
minoria socialista está utilizando nesse sentido, métodos simples e
moderníssimos. Contamos descrevê-los no próximo artigo.