Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

  Bookmark and Share

Folha de S. Paulo, 24 de setembro de 1972 

De eixo a eixo

 

À direita, Neville Chamberlain, Primeiro-ministro do Reino Unido (de 28 de maio de 1937 até 10 de Maio de 1940), "pessoalmente responsável pela deflagração da II Guerra Mundial"

Até o momento em que escrevo - quinta-feira à noite - a imprensa diária nenhuma notícia de importância publicou sobre as gestões econômico-diplomáticas do sr. Kissinger. Essa parcimônia de informações contrasta singularmente com a importância e a multiplicidade da matéria divulgada, sobre o mesmo assunto, na semana passada.

Daí nasce uma pergunta: teria algum fator emperrado os entendimentos Washington-Moscou?

Na verdade, o horizonte em que o sr. Kissinger operava era azul de anil. Mas, um leitor cuidadoso dos jornais, na última semana, poderia perceber nele, acumuladas em um canto, algumas nuvens escuras. Assim, o gen. Goodpaster, comandante da NATO, denunciou o fato de que o poderio militar soviético já vai excedendo, em alguns pontos, o dos EUA. Os EUA estudam a construção de um satélite invisível - inatingível pelas armas soviéticas, portanto - para compensar os progressos que a Rússia vem fazendo em matéria de mísseis. E o congresso norte-americano está em vias de aprovar o maior orçamento militar votado no país. Como se vê, tudo isto indica desconfiança. Há, pois, nos EUA quem não confie nos aliados vermelhos que Kissinger e alguns capitalistas norte-americanos super-sapos imaginam confiadamente estar comprando, à custa de dinheiro, prestigio e poder.

- Terá a corrente que desconfia dos soviéticos freado, enfim, os manejos da corrente que neles confia?

- Em termos mais precisos, terá a vigilância patriótica de certos meios ianques conseguido cortar o passo ao otimismo irrefletido dos modernos "Chamberlains" americanos?

* * *

Chamberlain... Este nome nos faz recuar para 1939.

Que o velho homem do guarda-chuva tenha sido pessoalmente responsável pela deflagração da II Guerra Mundial, é certo. - Qual foi a medida dessa responsabilidade, em confronto com a de Hitler? - Tenho também por certo que não foi sensivelmente menor.

As ingenuidades, as tergiversações e as concessões do "premier" britânico cobriram Hitler de glória diante da corrente alemã "revanchista". Com o que, o ditador ficou dotado da base política interna necessária para lançar-se à guerra. Assinando o pacto de Munique, Chamberlain entregou à Alemanha nazista todo o potencial econômico e militar checo, facilitando assim singularmente a agressão da Polônia! E quando, nas vésperas do conflito, uma elite de políticos e militares quis derrubar o nazismo, Chamberlain frustrou o golpe recusando-lhe apoio. De certo modo, Chamberlain fez Hitler e depois impediu que ele fosse derrubado.

Ora, a política de Kissinger prestigia, enriquece e salva o regime comunista, precisamente como fez Chamberlain com o regime nazista. As toneladas de dólares que Kissinger vai canalizando para a Rússia podem prolongar a existência do capitalismo de Estado, minado pelo burocratismo, pela estagnação e pela miséria. O apoio norte-americano pode desalentar de vez a oposição interna que se vai tornando, dia a dia, mais ameaçadora na Rússia. E confere a esta última os recursos necessários para reaglutinar os satélites, que se vão desconjuntando.

Kissinger está "refazendo" o regime soviético, e ipso facto, impede que seja destruído.

* * *

Há mais. Chamberlain foi, para o nazismo, um adversário débil; Kissinger está sendo para o comunismo, um aliado. Pois sua política vai constituindo um eixo Washington-Moscou, destinado a regular, entre as duas superpotências, a fruição dos frutos de uma paz, que só agora toma toda a sua plenitude.

Assinado este tratado, o eixo Estados Unidos-Rússia aparecerá claramente como o estilo de relações que sucederá à tensão entre os supergrandes.

E o mundo verá atônito que, feita uma terrível guerra para escapar do domínio de um eixo, caiu sob o império de outro eixo!

* * *

- Se o eixo Roma-Berlim tivesse vencido, a quem teria cabido a preponderância no mundo de após-guerra? A Roma? A Berlim?

A resposta não é difícil. Nem sequer nos dias de maior fastígio de Mussolini, o partido fascista dedicou a este o entusiasmo fanático, agressivo e feroz que o partido nazista jamais deixou de tributar a Hitler. Tudo leva a crer que o melhor da vitória ficaria com o partido mais feroz, isto é, o nazismo.

No momento em que o eixo Washington-Moscou parece prestes a constituir-se às escancaras, e já em condições de dominar o mundo, é impossível não perguntar de quem será o melhor da vitória.

A resposta, ainda uma vez, não é difícil. Pertencerá ao mais feroz. Qual seja o mais feroz, bem o sabemos...

* * *

Segundo Bismarck, numa aliança política, as relações entre aliados são sempre as de cavaleiro e cavalgadura. Se bem que o axioma generalize demais, não há dúvida de que, com parceiros inexoráveis como os soviéticos, o princípio que vigora é o de Bismarck. Ou seja, com o domínio do mundo pelos dois supergrandes, o parceiro mais feroz tudo fará para dominar o menos feroz. E isto tanto mais quanto as concessões de Kissinger dotam o parceiro mais feroz de uma capacidade de agressão que até aqui não possuía.

Tudo isso conduzirá a uma situação trágica. Os EUA terão de optar, dentro de algum tempo, entre o naufrágio final ou a guerra. Uma guerra já então travada com possibilidades de vitória muitíssimo inferiores às atuais.

Nada mais óbvio.

* * *

- "Mas, então, o que deseja o sr.: a guerra mundial imediata?" - perguntará algum leitor.

A meu ver, o único modo de salvar a paz consiste em que os EUA mantenham a Rússia numa posição de inferioridade militar incontrastável, e lhe neguem qualquer apoio econômico. O regime comunista, deteriorado pela inércia do burocratismo e pela fome, ficará assim entregue às feras do descontentamento que uivam cada vez mais alto por detrás da cortina de ferro.

Nessas condições, os dirigentes comunistas terão de se fazer pequenos, cordatos, tratáveis. E acabarão por minguar tanto, que o problema comunista talvez se resolva por detrás da própria cortina de ferro, por meio de uma insurreição popular incontenível. Ou, então, pela inteira desarticulação da máquina envelhecida e parksoniana do capitalismo de Estado.

* * *

- E se os soviéticos, desesperados diante de tal acaso, resolverem despejar suas bombas atômicas sobre a América do Norte, arrastando o mundo inteiro na sua própria ruína?

A esta objeção respondo que seria realmente atroz. Mas pergunto: o que fazer para escapar a tal perigo? Ceder?

Foi o que Chamberlain tentou fazer. E o caminho das concessões não conduziu à paz. Pelo contrário, precipitou a guerra.

Se há, pois, o que não se possa dizer em abono à política de Kissinger é que ele esteja levando o mundo para a paz...

1939-1972. De eixo a eixo, quantas coisas se passaram!

- Será que de nada nos valeu a lição, a terrível lição da inutilidade das concessões à Chamberlain?


Home