Folha de S. Paulo,
13 de
agosto de 1972
A
dupla inautenticidade da DC
A
Democracia Cristã é fundamentalmente um movimento, uma seita, uma
corrente filosófico-social dotada de mentalidade, programa e técnicas de
ação bem definidas. Em alguns países, a estruturação dessa seita de tal
modo se aperfeiçoou, que chegou a assumir a forma de partido político.
Em outros, tal estruturação é mais elementar, e por isto mesmo menos
consistente, menos palpável. A DC forma, nesses países, um magma de
pessoas cujos líderes se conhecem, se apoiam, colaboram para um fim
comum, sem contudo assumir uma forma associativa definida.
No
Brasil, a DC começou por ter esta forma de um possante magma ideológico,
passou a ser partido político, e mais tarde voltou a ser magma. Mas
jamais deixou de ter influência ponderável.
Como
o comunismo, do qual é uma espécie de caçula, a DC é, em toda a América
do Sul, essencialmente um fenômeno de salão e de sacristia. Ela não
conquistou a pequena burguesia, nem o operariado. O grosso de seus
recrutas faz parte da alta burguesia, ou dos círculos snobs da burguesia
média. O conjunto dos burgueses demo-cristãos constitui a “saparia”.
Centrista na aparência, esta é ardorosamente esquerdista na realidade. E
quando a um sapo se pede uma clara e peremptória definição de sua
posição política ou ideológica, ele não oculta seu esquerdismo, mas
procura amenizar o mau efeito de sua tomada de posição, enfeitando-a com
o rótulo demo-cristão.
Já
nas sacristias, o democrata-cristão apresenta fisionomia algo diversa.
Ele não se confunde com o padrezinho incendiário, a freira subversiva ou
o agitador leigo. Mas também timbra em se mostrar “evoluído”. Assume
ares de pessoa aggiornata, mas de temperamento cauto e conciliador.
Procura criar a impressão de que está a meio termo entre a TFP e a
esquerda, e aponta defeitos em uma e outra. Cochichando indignado,
recomenda toda a intransigência para com a TFP. Falando alto, com timbre
untuoso e linguagem condescendente, preconiza compreensão e tolerância,
quando se trata da esquerda.
Em
última análise, afirmando-se não comunista, (e por vezes até
anticomunista) a DC persegue todos os adversários do comunismo, e
favorece todos os amigos deste.
Por
isto, jamais reconheci à Democracia Cristã a autenticidade do nobre
qualificativo de “cristã”. Ela não existe para a defesa da Civilização
Cristã, mas para o favorecimento da marcha para a esquerda.
Enquanto partido político ou seita filosofico-social, ela serve de
inocente-útil (mais ou menos inocente, conforme o caso, mas sempre muito
e muito útil) à expansão do flagelo da sociedade espiritual e temporal
de nosso século, que é o comunismo.
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* *
Não
merecendo ser chamada cristã, a DC será pelo menos democrática? À
primeira vista, dir-se-ia que sim. Sempre que, em qualquer país, se vem
governos em luta contra o comunismo, surge uma oposição da qual a ponta
de lança é a Democracia Cristã.
Como
a repressão ao comunismo supõe necessariamente certas restrições à
liberdade, e como, de outra parte, os democrata-cristãos se proclamam
democratas por excelência, não causa surpresa vê-los, a este título,
empenhados na defesa de todas as liberdades democráticas... inclusive
das que são indispensáveis para que o comunismo atinja tranqüilamente
suas metas.
No
entanto, enfarado de testar inúmeras vezes a inautenticidade do
cristianismo da DC, tenho sido levado a me perguntar até que ponto é
autêntico o democratismo dela. Tudo quanto na democracia sói refletidos
erros filosóficos, religiosos, políticos e sociais da Revolução
Francesa, eu o rejeito. Expliquei-o em meu livro “Revolução e
Contra-Revolução”. Mas, desde que a DC se diz democrática, é-me lícito
perguntar se de fato o é.
Assim, mais concretamente, pergunto: - se em um país, os
democrata-cristãos não tivessem a menor possibilidade de levar à vitória
seu programa em eleições regulares, mas só por meio de uma ditadura, a
DC apoiaria tal ditadura?
Se
não a apoiasse, a DC seria coerente com seu democratismo. Se a apoiasse,
seria incoerente. Pois a imposição de um programa, não ouvido o
eleitorado, e até mesmo contra o desejo deste, é precisamente o
contrário da democracia.
A
resposta a essa minha pergunta, deu-a recentemente, com uma clareza
desinibida, a DC peruana.
Como
sabemos, vigora no Peru uma ditadura militar que tem aplicado, em larga
medida, as reformas de base esquerdistas pleiteadas pela Democracia
Cristã: reforma agrária radical, reforma de empresa, etc.
Entretanto, em maio deste ano, o presidente do PDC peruano, num discurso
transmitido por rádio e TV, comunicou oficialmente o apoio de seu
partido ao regime, alegando a fundamental afinidade entre a ideologia
democrata-cristã e o pensamento que inspira o reformismo esquerdista do
governo.
O
fato - noticiado por “La Prensa” de Lima, em 10 de maio p.p. - é
absolutamente característico. A DC não é contra todas as ditaduras, mas
só contra as que se opõem à marcha para a esquerda. Os princípios
democráticos, ela os alega somente como pretexto para tolher a ação das
ditaduras antiesquerdistas. Mas os atira de lado e bate alegremente
palmas quando se trata de ditaduras esquerdistas.
Em
suma, total inautenticidade de rótulo. Inautenticidade cristã.
Inautenticidade democrática.
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* *
É bem
verdade que se pode objetar, em favor da Democracia Cristã, que a DC
peruana talvez seja uma exceção à regra. - Compreendo que semelhante
alegação possa causar impressão no espírito de quem não esteja habituado
a seguir de perto o fenômeno demo-cristão. Mas os que o analisam há
muitos anos, sabem que nada há mais homogêneo no mundo, em suas
doutrinas, truques e dengos, do que a Democracia Cristã. Ela é a mesma
por toda a parte, como o é o comunismo, ou o socialismo.
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-
Quer a prova disto, leitor? - Mostre este artigo para qualquer
democrata-cristão de suas relações. Ele ficará indignado comigo. Não,
porém, com a DC peruana...
Se
algum leitor conhecer alguma exceção, comunique-me. Terei com isto
grande alegria!