Folha de S. Paulo, 11 de junho de 1972
Deus
julgará
Para
definir numa fórmula concisa — se bem que algum tanto pedante — o que
resultou de mais essencial do encontro de Moscou, pode-se dizer que as
relações entre o mundo comunista e o não comunista passaram da fase
polêmica para a dialética.
Em
outros termos, antes das visitas de Nixon a Pequim e Moscou, a opinião
pública ainda permanecia na convicção de que os dois mundos estavam em
luta ideológica: o Ocidente baseado em algumas verdades perenes e
absolutas, herdadas do patrimônio espiritual cristão, e o Oriente
afirmando como um dogma a relatividade e a mutabilidade de todas as
doutrinas... exceto a do relativismo.
Depois dos conciliábulos de Pequim e de Moscou, ficou implicitamente
notificada toda a humanidade, de que para as superpotências não há erros
nem verdades absolutas, e todas as oposições ideológicas encontram sua
solução, não na polêmica, mas no diálogo. Sim, o diálogo. Isto é, um
meio labioso e macio de encontrar, em cada pendência, uma situação
intermediária, na qual as partes se encontram. Cada uma cede um tanto de
sua ideologia, e dessa barganha surge, não a verdade, mas a “verdade”,
isto é, um imbroglio qualquer, que ninguém toma inteiramente a sério, e
que os acontecimentos se incumbirão de levar na grande enxurrada da
História.
Foi
animado desse espírito, que Kissinger exclamou, depois do acordo: “A
Rússia e os EUA poderão dialogar como nunca o fizeram no passado”.
Leonid Zamiatin, diretor do centro de imprensa de Moscou, afirmou mais
ou menos o mesmo.
—
Para onde essa euforia dialética conduzirá o mundo? A resposta é fácil.
Basta ver para onde o está conduzindo desde agora.
*
* *
Do
lado soviético, num artigo do Pravda, foi dada uma interpretação do
acordo, que dá margem a tudo. Afirma o jornal que a Rússia obteve uma
vitória diplomática, ao conseguir que os americanos aceitassem o fim da
guerra fria, e o início de uma era de paz. O jornal acrescenta que esse
êxito do Kremlin está na linha estratégica de Lenine. Ora, para Lenine,
a paz é desejável sempre que pela frente esteja um adversário mais
forte. É preciso então tirar partido da paz, a fim de superar o inimigo,
em riqueza e poder. Isto obtido, os comunistas devem recomeçar a
agressão.
Explica-se assim a sofreguidão com que os soviéticos desejam receber
financiamentos e apoio tecnológicos das grandes nações não comunistas,
como os EUA, a Alemanha e o Japão. Foi combinado em Moscou que o Kremlin
e a Casa Branca estabelecerão desde logo comissões para ativar o
intercâmbio entre os dois mundos (o intercâmbio entre o rico e o
esfarrapado!), e proporcionar, desse modo, à Rússia, as vantagens que
almeja.
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Enquanto assim cuida de enriquecer-se, a Rússia aproveita a paz do
diálogo, para vibrar contra o Ocidente um terrível golpe econômico. O
governo de Bagdad, do qual fazem parte comunistas, pouco depois da
visita de Nixon a Moscou, nacionalizou (entenda-se “confiscou”), uma
empresa de capitais ocidentais, a Irak Petroleum Company, a qual,
através de oleodutos que passam pela Síria e pelo Líbano, fornece grande
parte do petróleo usado pelo Velho Mundo.
Segundo se infere do noticiário da grande imprensa, esse petróleo
passará a ser exportado para a Rússia. E esta, benignamente, passará a
fornecer petróleo russo para as nações ocidentais às quais falte o
petróleo iraquiano.
A
Síria, horas depois do Iraque, também confiscou os bens da grande
empresa petrolífera. E o Líbano conservador estremece. Tudo isto sucede
num Oriente Médio já convulsionado.
Com
efeito, visitando a Pérsia logo depois da Rússia, Nixon foi recebido com
bombas e atentados simbólicos, deflagrados pelos agentes dos mesmos
anfitriões que acabavam de o recepcionar em Moscou. É a insurreição que
ferve no domínio do Xá, com o objetivo de impor também ali um governo de
coligação pró-comunista, e drenar depois as imensidades de petróleo do
Golfo Pérsico para a esfera de influência russa.
O
leitor, ao considerar seriamente esse feixe de notícias sinistras, por
certo se assustará. Não sei se Nixon se assustou. Em caso afirmativo,
seu susto terá sido de curta duração.
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* *
Com
efeito, logo depois de visitar a Pérsia, Nixon voou para Varsóvia. Ali,
aclamou-o uma população delirante de entusiasmo que nele via o possível
salvador do pobre país esmagado pelos comunistas. Nixon discursou. E
nada de melhor achou de fazer, aos desditosos varsovianos, o elogio dos
progressos alcançados pela Polônia depois da II Guerra Mundial. Ou seja,
sob a ditadura comunista...
Ao
ouvir isto, o que teriam pensado as famílias dos operários que há menos
de um ano atrás se revoltaram em Dantzig, movidos pela miséria?
Foi
com este golpe nas esperanças de libertação da Polônia que Nixon deu uma
prova — e que prova! — de sua sinceridade no diálogo com Moscou. Em
Teerã, acabava ele de receber uma prova da insinceridade dos
soviéticos...
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* *
Assim, a Rússia vai aproveitando a paz dialética para ir-se enriquecendo
e depauperando o adversário. Mas para preparar a III Guerra Mundial,
isto não lhe basta. É-lhe necessário, ainda, levar os americanos a
aceitar a decadência de sua influência mundial e de seu poderio militar.
Quanto à retração da influência americana, aceita-a clara, se bem que
implicitamente, o presidente Nixon, no discurso eufórico que dirigiu ao
Congresso de seu país. Disse ele que os EUA conservavam suficiente
poderio para se defenderem a si próprios contra uma agressão russa.
Nenhuma palavra acrescentou quanto à defesa do resto do mundo livre. Em
outros termos, a América do Norte se dessolidariza dos outros países não
comunistas, expostos assim à sanha de Moscou.
Mais
especialmente sobre a América Latina, certos telegramas dizem que Nixon
tentou obter dos soviéticos um abrandamento do seu esforço subversivo
nesta parte do globo. Como os soviéticos recusassem, o presidente
americano teve que renunciar a qualquer referência aos países
latino-americanos no comunicado conjunto.
Como
vão longe os dias Monroe...
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Ao
mesmo tempo, os EUA começaram a reduzir solicitamente seu esforço de
guerra. O Secretário da Defesa, Melvin Laird, ordenou logo a suspensão
de todos os projetos militares que violam o tratado sobre a limitação de
armas estratégicas, assinado em Moscou.
— Que
garantias tem Nixon de que a Rússia fará o mesmo? Segundo Kissinger, os
meios de fiscalização dos EUA sobre o desarmamento russo são efetivos.
Pelo contrário, James Reston, colaborador do New York Times, reconhece
que não há meios seguros de comprovar o cumprimento dos acordos pelos
russos.
Esse
ponto absolutamente essencial fica, pois, na incerteza. Temo que o mundo
venha a pagar caro essa incerteza!
*
* *
—
Mas, dirá alguém, Nixon terá enlouquecido? — A hipótese é evidentemente
inaceitável. James Reston, sem aludir diretamente a Nixon, colocou o
problema em termos bem claros. Se alguém acha possível que os soviéticos
estejam de boa-fé, terá razões para esperar que a política de Nixon
evite a guerra. Se, pelo contrário, considera impossível a boa-fé
soviética, deve admitir que a política de Nixon não evita a guerra. E,
de minha parte, acrescento que essa política prepara a guerra, na medida
em que dá meios aos soviéticos para se fortalecerem e se atirarem depois
contra os EUA.
Que
Nixon, um homem de pouca doutrina e muito pragmatismo, acredite na
palavra dada pelos soviéticos, apesar do amoralismo visceral do
marxismo, não espanta.
O
que, para mim, fica sem explicação é como possa ele ter abandonado à
sanha russa todo o mundo livre, inclusive a América Latina, chegando até
a fazer a apologia da ocupação russa diante dos pobres poloneses, isto
tudo no momento em que, no Oriente Médio, a Rússia vai devorando jazidas
petrolíferas dentre as principais do mundo e pondo assim de seu lado
meios inapreciáveis para ganhar uma nova guerra.
Seja
como for, cesso hoje meus comentários sobre o conciliábulo de Moscou.
A
História algum dia esclarecerá os fatos, e os julgará.
E,
mais do que tudo, os julgará Deus no grande dia do juízo último.