Folha de S. Paulo, 30 de abril de 1972
Quando agoniza a propaganda
No momento em que escrevo — sexta-feira — pela manhã — a imprensa vai
divulgando no Brasil a notícia de que o governo de Willy Brandt,
já fortemente golpeado pelo resultado das eleições em Baden-Wurttemberg,
só não foi derrubado pela Câmara porque faltaram dois votos para que o
grupo oposicionista alcançasse o total necessário. Ao mesmo tempo, os
governistas franceses vão digerindo como podem a “vitória” tão cheia de
frustração, que obtiveram no último plebiscito.
Nem para Willy Brandt nem para Pompidou
— os
“vitoriosos” em uma e outra prova política — a situação se mostra
risonha. O primeiro caminha para outra prova ainda mais arriscada na
Câmara Baixa de seu país. E o segundo deve estar se perguntando que
atitude tomar em vista do fato de que 63,8% dos eleitores do seu país se
mostraram indiferentes ou hostis às mirabolantes perspectivas de uma
Europa Unida, da qual Paris
seria
a capital e... ele próprio o chefe supremo.
De comum entre a situação do chefe de Estado francês e do chefe de
Governo da Alemanha Ocidental não há apenas a frustração de uma
“vitória” que tem todo o significado de uma derrota. A ambos aflige a
mesma perplexidade quanto ao futuro.
Este ponto, desejo ressaltá-lo detidamente hoje.
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Comecemos por Willy Brandt. O Tratado por este assinado em Moscou, em
1970, está longe de conter em si a realização de todo o programa da
Ostpolitik.
É apenas um primeiro passo.
É apenas um primeiro passo. Uma vez ratificado pelo Parlamento de Bonn,
abriria ele campo para uma verdadeira e sempre mais ampla colaboração
entre a Alemanha Ocidental e o mundo de além cortina de ferro. Tal
colaboração não representaria, entretanto, uma ruptura de Bonn com o
Ocidente. Muito pelo contrário, a Ostpolitik conta com o apoio — mais
explícito, ou menos, mas em todo caso caloroso — dos governos de
Washington, Paris, Londres e Roma. A colaboração Bonn-Moscou em nada
arrefeceria as ligações da Alemanha Ocidental com essas capitais. Assim,
Bonn seria o elo a reunir num só laço de paz, Oriente e Ocidente.
— De que paz? A paz da masmorra ou a paz que resulta da compreensão
profunda, da amizade leal, da colaboração franca entre todos os povos?
— Ninguém pode crer em paz com os comunistas, baseada em compreensão,
amizade e lealdade. Diante dos Estados Unidos
em
franco processo de amolecimento e da Europa
encanecida, o Kremlin
jamais aceitará outra forma de paz, senão a do domínio — velado,
talvez, nos primeiros anos, e brutal em seguida — sobre os seus
parceiros. Pois para os comunistas a lei da força é a única que vale.
Haja vista as sucessivas ameaças com que Moscou procurou impor
recentemente aos alemães a aprovação do Tratado assinado por Brandt. É
para a caminhada em declive, rumo à dura “pax soviética”, que Willy
Brandt convida seus concidadãos. O pórtico deste caminho é o Tratado de
Moscou. A recusa do eleitorado, expressa no último pleito de transpor o
pórtico, importa ipso facto em rejeitar o caminho.
Ora caminhos como estes, um governo não os pode encetar com o apoio em
minorias, ou em maiorias infinitesimais. Os grandes passos só podem ser
dados por organismos robustos. E os grandes programas só podem ser
executados por governos apoiados sobre firmes bases políticas.
Em suma, Willy Brandt encontra diante de si fechado o caminho.
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E passemos agora a Pompidou.
A “Europa dos Dez”, que este pretendia consagrar por um plebiscito, não
é senão um lance de colaboração com os propósitos de Brandt. Com efeito,
o ponto terminal da Ostpolitik não é apenas o bom entendimento entre as
duas Europas, mas a formação de uma pan-Europa que vá dos Urais
até
os Pirineus, ou mesmo até o litoral português. Esta pan-Europa é o termo
lógico do pan-europeismo, imaginado num clima de reconciliação do bloco
soviético com o ocidental.
Ora, o processo mais fácil para a formação dessa pan-Europa não é a
realização de uma série infinda de negociações do Kremlin com cada um
dos países da Europa Ocidental. É a construção de uma Federação da
Europa Ocidental dirigida por utopistas simpáticos ao comunismo e
impregnados de espírito socialista. Ora, em geral, esta é a mentalidade
dos principais líderes pan-europeistas do Ocidente. Propiciando a
consolidação da “Europa dos Dez”, as vias de Pompidou se encontram com
as de Brandt.
Sentindo a necessidade de um vigoroso apoio para as futuras peripécias
que encontraria em seu arriscado caminho, Pompidou recorreu ao
referendo.
São muito sintomáticos, quanto a esta sua preocupação pelo futuro, as
palavras iniciais da consulta que ele dirigiu ao povo francês: “aprovais
as novas perspectivas que se abrem para a Europa”? — A resposta a essa
consulta importou numa virtual recusa dessas “perspectivas”. Como Brandt,
Pompidou não sabe, pois, para onde rumar agora.
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Compreendo perfeitamente a perplexidade dos dois “vencedores”. Ela não
resulta apenas do fato de que os respectivos eleitorados não se deixaram
guiar por eles, como esperavam. Por detrás deste problema há outro mais
grave. Quando o Tratado de Moscou foi assinado, a opinião alemã se
mostrou de uma atonia surpreendente. Nem vaias, nem aplausos: sono.
Sobre esta opinião sonolenta, a propaganda do governo e a do possante
partido governista derramaram, durante todo o tempo, uma caudal de
argumentos ora lógicos, ora psicológicos. Enquanto isto, a cúpula
oposicionista se mostrava de uma inércia desconcertante. Entretanto,
pouco antes da ratificação dos tratados, o descontentamento popular se
foi acentuando, e a consulta eleitoral em Baden-Wurtemberg deu no que
deu. — Do que valeu então a propaganda?
A mesma pergunta cabe quanto à França. O governo Pompidou e o partido
gaullista despejaram torrentes de propaganda sobre o eleitorado.
Opunha-se a eles a fraca reação de uma minoria hesitante e dividida.
Entretanto, o plebiscito deu no que sabemos. A grande maioria do povo se
manifestou, pois, indiferente, ou até refratária, à propaganda.
— Essa impotência da propaganda resultará de algum fator ocasional, que
Brandt e Pompidou poderão eliminar com facilidade? — Não me parece. O
fenômeno é de porte universal. Nos Estados Unidos, por exemplo, as
eleições prévias estão fazendo ver um desgaste de todas as lideranças
políticas. E os técnicos atribuem esse fato à vulgarização dos políticos
produzida pela superpropaganda, especialmente a da televisão. Parece que
a propaganda está se autodestruindo por seus próprios excessos.
A perplexidade de
e
Pompidou,
o ocaso da propaganda: que dons do Céu!
Que Deus no-los acresça, fazendo com que o abuso da propaganda se
auto-extermine, e que Brandt e Pompidou não encontrem meios de conduzir
seus países para a pan-Europa da “pax soviética”...