Folha de S. Paulo, 9 de abril de 1972
Apetite de extravagância total
O
problema da droga continua a chamar a atenção dos psicólogos, moralistas
e sociólogos do mundo inteiro. Estudam-no dos mais diversos pontos de
vista, com intuito de conter o alarmante aumento do uso dela no mundo
contemporâneo.
Neste
afã, os pesquisadores se perguntam, entre outras coisas, qual o
itinerário do vício através das várias camadas sociais. Em outros
termos, quais as primeiras zonas da sociedade a capitular ante ele, e
através de que etapas ele chega a contagiar, em seguida, todo o corpo
social.
Na
França, a comissão Chaban-Delmas chegou, neste particular, a conclusões
também aceitas, segundo consta, por outras entidades igualmente
competentes. A droga penetra, de início, nos círculos sociais refinados
e nos meios artísticos. Numa segunda etapa, alcança os meios
universitários e estudantis. Por fim, e mais ou menos simultaneamente,
ela atinge todos os outros ambientes, inclusive o operariado. Toca aos
meios rurais a honra de se manterem quase inteiramente refratários à
droga.
— Por
que isto é assim? Por que são os campos menos contamináveis do que as
cidades? Por que as classes refinadas ou artísticas são mais vulneráveis
do que as estudantis? E por que as estudantis o são mais do que outros
setores sociais?
Essas
questões apresentam um poderoso interesse, pois uma vez esclarecidas,
não se estaria longe de se ter descoberto qual a verdadeira gênese do
vício.
Não
pretendo propor aqui uma solução simplista para problema tão complexo.
Desejo simplesmente expor algumas observações que os resultados obtidos
pela comissão Chaban-Delmas me sugerem.
Para
isto, permita-me o leitor que por alguns instantes mude de assunto.
* * *
—
Como se faz habitualmente a implantação do comunismo em um país?
De
início, a tarefa não é tão complicada. Por toda parte há utopistas
inconformados, que sonham romanticamente com revoluções-panacéia,
capazes de transformar o mundo em um paraíso. Sabe-se em que rodinhas,
em que lugares de diversão, em que livrarias encontrar pessoas como
estas. Dois ou três proselitistas bem adestrados, vindos de Moscou,
Pequim ou Havana, facilmente encontram e arregimentam em células
comunistas, as mais ativas e exaltadas dentre elas.
Mais
difícil é a tarefa que vem depois. — Como fazer partilhar do utopismo
comunista (utópico ainda mesmo quando se apresenta com o rótulo de
"científico") os espíritos objetivos, sensatos, arejados, que constituem
a grande maioria da população?
Em
tese, a resposta parece simples. É só procurar os ambientes menos
favorecidos pela situação social e econômica. Ali o número de
descontentes — ainda que não utopistas nem românticos — deve ser grande.
E portanto deve ser fácil o recrutamento de prosélitos para o comunismo.
Feito este recrutamento na escala devida, será possível deflagrar a
subversão dos pobres contra os ricos.
Tudo
isto em tese. Na realidade, não é assim que progride o comunismo.
Habitualmente, a imensa maioria dos operários se mostra indiferente ou
hostil ante a pregação comunista. E as primeiras células de
revolucionários românticos permanecem fechadas em si mesmas, até que um
belo dia, nos círculos sociais snobs, alguém se lembre de
dizer-se comunista. Rapidamente esse vanguardeiro encontra alguns
congêneres que, para atrair a atenção sobre si, também começam a se
jactar de comunistas. Daí as fagulhas se propagam céleres, dos snobs
da moda para os da "inteligentzia". Por vezes, a marcha do contágio é
inversa. São os snobs da "inteligentzia" que contagiam os da
moda.
Por
mais inovadora que se diga a mocidade, muito do que nela existe ou
acontece é reflexo das gerações que a antecederam. Entre os jovens
universitários também há snobs da moda e da cultura. Vendo o que
acontece com seus congêneres mais velhos, também neles começa a crepitar
o incêndio comunista.
Como
é natural, a atenção do grosso da população está voltada para os que
representam o prestígio da situação social, da fortuna, da inteligência
ou da mocidade. Não faltam meios de comunicação social que fazem crer à
multidão, que os snobs dessas várias categorias formam, não
minorias exóticas e isoladas, mas a maioria prestigiosa e dinâmica dos
respectivos ambientes. O mau exemplo arrasta facilmente as multidões.
Daí o se propagarem então, no corpo social, como por metástase, os
corpúsculos comunistas.
O
ambiente mais refratário à proliferação comunista é o agrícola.
E
aqui fica a constatação rica em matéria para as mais diversas reflexões:
o itinerário do comunismo é idêntico ao da droga.
Isto
facilmente se explica. Comunismo e droga são processos de decomposição.
Ambos atacam a parte mais frágil do organismo social, que é a mais
propensa à extravagância, às sensações violentas ou super-requintadas, à
evasão da lógica, do bom senso e da realidade.
"Corruptio
optimi pessima". Nada de melhor do que as boas elites. Por isso mesmo,
nada pior do que as elites sofisticadas, deterioradas, divorciadas da
realidade, e falhas do senso do dever. Para elas tudo é objeto de
exibição e jogo: as idéias, a moral e as tradições. E no centro desse
jogo está o campeonato das vaidades. Contanto que cada qual consiga
exibir-se, está contente. E como o processo mais cômodo para exibir-se é
ser extravagante, daí resulta a espalhafatosa e inglória corrida rumo ao
disparate total. Cada qual em seu gênero, o comunismo e a droga são
disparates totais. Não espanta que a eles corram os mais arrojados
dentre os snobs, levando atrás de si a caudal dos seus
seguidores.
Este
jogo — como todos os outros — traz seus riscos.
Quantos começam a se afirmar comunistas,
sem de fato o serem! Mas à força de se dizerem tais, acabam sendo. Como
muitos há que, quando começam a usar drogas, o fazem só para se
mostrar. Mas acabam arrastados pelo vício.
É a
triste sina dos que brincam com fogo, ainda que por mero snobismo.
"Quem ama o perigo, nele perece" (Ecli. 3, 27), diz o Espírito Santo...
* * *
Isto
posto, o snobismo nos aparece como um dos mais possantes — o mais
possante, talvez — dos fatores de expansão, tanto da droga como do
comunismo. E o itinerário de um e outro, na contaminação de todo o corpo
social, é a própria rota do snobismo, rumo à extravagância total.
—
Exagero? — Não creio. Veja-se em outro campo o poder do snobismo,
e o fascínio que sobre este exerce a extravagância. Falo do nudismo.
Todas as modificações da moda se fazem hoje sob o signo da
extravagância. E a extravagância para a qual tendem é a conquista — por
etapas sempre mais ousadas — do nudismo total. — Ora, quem, senão o
snobismo, arrasta as multidões no caminho, ou melhor, no descaminho
da moda?
* * *
Não
espero, porém, que os especialistas na matéria dêem o devido realce ao
fator snobismo.
Não é snobe
falar dele...