Folha de S. Paulo, 12 de março de 1972
Yalta
multiplicada por Yalta
"Ambas as partes estão de acordo em reconhecer que é de desejar que se
aprofunde a compreensão entre os dois povos. Com esse fim, discutem
assuntos específicos de campos como a ciência, tecnologia, cultura,
esporte e jornalismo, nos quais contatos e intercâmbios de povo a povo
seriam de recíproco benefício. Cada uma das partes se compromete a
facilitar o desenvolvimento crescente desses contatos e intercâmbios".
Essas palavras — completadas em seguida por alguns parágrafos sobre o
comércio sino-americano — são também da "Declaração de Xangai". Pelo que
elas têm de oco, frustro e suspeito, não podem passar sem um comentário.
Em
síntese, nesse tópico está todo um programa de aproximação entre os
povos norte-americano e chinês. Entre os povos, note-se bem, e não
meramente entre os governos.
Assim, antes de tudo é preciso indagar qual a autenticidade dos
projetados contatos. — O que a "Declaração de Xangai" entende por "povo
chinês"? São as multidões delirantes de entusiasmo pelo comunismo, das
quais nos falam a imprensa, o rádio e a TV de Pequim? Até que ponto são
autênticas essas multidões? Até que ponto se identificam com o próprio
povo? — Sabido que toda propaganda oficial comunista mente sem
acanhamento quando se trata de afirmar a solidariedade do povo à
ideologia do Partido, a pergunta é inevitável.
Somos, assim, levados a suspeitar vivamente que o "povo chinês" com o
qual os norte-americanos vão "aprofundar a compreensão", não é senão o
PC. E que os contactos dos yankes se farão, não com representantes da
maioria autêntica dos chineses, mas com equipes de cientistas, técnicos,
esportistas e jornalistas, filiados ao partido oficial. Com fanáticos,
portanto, ou com pobres vítimas da lavagem cerebral ou do pânico.
— De
que valerão, então, esses contatos, para a aproximação de ambos os
povos?
* * *
A
esta primeira observação, acresce outra sobre a lealdade dos ditos
contatos. Se Pequim desejasse realmente uma mútua compreensão entre os
povos chinês e norte-americano, jamais deveria contentar-se com os
contatos entre técnicos e especialistas de parte a parte. E isto ainda
que estes representassem autenticamente seus povos. Se fosse sincera, a
China comunista deveria abrir, de norte a sul, as suas fronteiras para
os americanos, e lhes garantir toda a liberdade de ir e vir por onde
quisessem. Facilmente teria a recíproca nos Estados Unidos. Mas isto, os
chineses o evitam com cuidado. Na "Declaração de Xangai", prevêem tão
somente contatos entre técnicos e especialistas, ou então de jornal a
jornal, de revista a revista, etc. Tudo de longe, facilmente filtrável e
controlável, com o propósito de mostrar apenas o que lhes convém
mostrar. E sobretudo de esconder quanto lhes convém que no Ocidente
ninguém saiba.
—
Chamar isto de sério e leal contato de povo a povo, não é claro embuste?
* * *
Embuste, também o notamos no conteúdo dos contatos. — Que significa
"aprofundar a compreensão"? — Dir-se-ia que entre a China comunista e os
EUA não há o menor entrave. Que ambas as partes se compreendem
mutuamente. E mutuamente simpatizam. Trata-se apenas de aprofundar esse
conhecimento e essa compreensão. Tal qual sucede, por exemplo, entre os
povos irmãos da América Latina.
Ora,
a realidade é bem diversa. Tomado o PC chinês como é, apresenta ele, em
relação ao povo norte-americano, um sem-número de divergências, que vão
desde o estilo de vida até as mais altas cogitações em matéria
filosófica e religiosa.
— Por
que, então, falsear dessa maneira a realidade, alicerçando o programa
das relações entre esses povos no falso pressuposto de que basta
aprofundar de parte a parte o conhecimento, para melhorar as relações?
Em
situações como esta, a aproximação transcende de muito a mera
compreensão recíproca. Ela importa na aceitação da ideologia de uma das
partes pela outra. Ou na convergência de ambas para um amálgama
ideológico.
Se,
pelo contrário, as relações ficarem apenas em compreensão mútua, à
medida que melhor se compreenderem, mais perceberão quanto estão
distantes.
Imaginemos "em concreto" um norte-americano liberal e um chinês
comunista que expõe, cada qual, sua ideologia ao outro. Se ambos ficarem
na respectiva posição, sairão do encontro mais cientes do que nunca de
tudo o que os separa.
Ora,
só um tolo poderá crer que o PC chinês enviará, para esses contatos,
gente capaz de mudar de campo. Logo, tais contatos só serão promovidos
pelo PC na medida em que tiver a esperança de "converter" os
norte-americanos, ou, pelo menos, de os "amolecer" em relação à doutrina
marxista.
Este
o sentido real do caviloso tópico da "Declaração de Xangai". Sentido que
não salta aos olhos com a primeira leitura, mas que se torna patente, se
se submeter o texto a uma análise séria.
* * *
— Na
prática, no que dará isto?
Dada
a candura liberal dos norte-americanos e a astúcia comunista dos chinos,
dará em um resultado altamente conveniente para os comunistas.
Estes
entrarão em tais relações com o único objetivo de aproveitar todas as
ocasiões para fazer aceitar a sua ideologia pela outra parte.
Pelo
contrário, os norte-americanos, fundamentalmente liberais, irão para os
encontros na persuasão de que se trata de uma mera informação
doutrinária recíproca, sem intuito de mútua persuasão. E julgarão faltar
ao "fair play" se se entregarem ao proselitismo.
Em
outros termos, as relações sino-americanas se desenvolverão numa base da
qual os chinos saberão tirar partido, e os americanos não.
* * *
É
este um dos muitos aspectos desconcertantes da "Declaração de Xangai".
Como ele, haveria cem outros a apontar, que a tornam um dos documentos
mais calamitosos da História.
Deste
ponto de vista, pode-se dizer que em nosso século tão cheio de
calamidades, o entreguismo é a maior. Em Munique, teve ele uma primeira
manifestação que estarreceu os homens de bom senso.
Yalta
foi uma calamidade maior do que Munique. Foi Munique multiplicada por
Munique.
A
"Declaração de Xangai", é uma Yalta multiplicada por Yalta.
— Onde nos levará ela?