Folha de S. Paulo, 5 de março de 1972
Entrando na jungle
Não
creio que o grande público tenha lido na íntegra o extenso comunicado
sino-americano, sobre as conversações de Pequim. Contudo, contém este
alguns aspectos que não podem passar despercebidos por quem deseje
conhecer bem a semana que, segundo Nixon, "mudou o mundo". Creio, assim,
ser útil ao leitor comentar aqui alguns trechos do extenso documento.
Tem
ele uma estrutura mais própria a uma peça de teatro, do que a um
comunicado político: em longos trechos fala só o norte-americano, depois
só o chinês, mais adiante falam ambos juntos, e depois o dueto recomeça,
falando novamente cada parte por si. E no final, terminam falando juntos
ainda uma vez.
Selecionei alguns trechos em que fala o chinês, ou só por si, ou
juntamente com o americano.
* * *
O
chinês abre suas declarações com um conjunto de enunciados
lítero-demagógicos. Diz ele: "Em toda parte onde há opressão, há
resistência. Os países querem a independência. As nações querem a
libertação e o povo quer a revolução. Isto se deve à tendência
irreversível da História".
Como
de costume, na propaganda comunista, há aqui um misto de erros, de
conceitos confusos e de verdades acacianas.
É
óbvio que "em toda parte onde há opressão, há resistência". Isto em
princípio. Mas, olhando com boa fé para dentro de sua própria casa, os
chineses poderiam dar-se conta de que, na prática, isto não é sempre
assim. A opressão na China vermelha é completa. E a reação do pobre
povo, esmagado, policiado, intoxicado de propaganda, é irrelevante.
Mas
os chineses não se embaraçam com contradições como esta. Fazem-se
campeões do princípio de que "as nações querem a libertação", sem se
lembrar de que provocam ipso facto a pergunta: "O que faz então a
China na Mongólia e no Tibet, que ela mantém sob seu jugo à viva força?"
Prossigamos na análise: "(...) e o povo quer a revolução. Isto se deve à
tendência irreversível da História". A frase repete a surrada tese
marxista de que a revolução proletária, nascida da inconformidade das
massas oprimidas, vencerá fatalmente pelo natural desenrolar da
História.
Ora,
desde meados do século XIX até nossos dias, o comunismo vem fazendo
propaganda sem ter alcançado, em uma só eleição, uma maioria
definitivamente comunista. Isto no Ocidente.
Nos
países da cortina de ferro, o comunismo tem pânico de eleições livres e
honestas. Assim, tanto os povos que ele não domina como os que ele
domina, o repudiam.
- O
que nos ensina então a História? - Não é a irreversibilidade da adesão
das massas ao comunismo, mas precisamente o contrário.
Tudo
isto é bem sabido por todo o mundo. Pequim, entretanto, o contesta com
uma desenvoltura que é impossível não chamar de cinismo...
* * *
Depois do cinismo na mentira, vem o cinismo na ameaça: "A China apoia
com firmeza as lutas de todos os povos e nações oprimidos, pela sua
liberdade e sua libertação, e sustenta que os povos de todos os países
têm direito de escolher seus sistemas sociais segundo seus próprios
desejos".
Sabemos no que consiste esse "apoio" chinês, pois o Brasil, como tantos
outros países, está infestado de literatura sino-comunista, de subversão
sino-comunista, etc. Assim, o que a China afirma nesse tópico é a
pretensão de favorecer em toda parte a subversão comunista.
Isso
não impede o comunicado chinês de afirmar, logo em seguida, que a China
reconhece a todos os povos o direito "de se oporem (...) à ingerência
(...) e subversão estrangeiras". - Poderia ser mais ostensiva a
contradição?
Mais
adiante, o cinismo ainda uma vez se mostra sob a forma de uma clara
ameaça de ingerência chinesa no Japão. Com efeito, Pequim afirma que "apoia
com firmeza o desejo do povo japonês de edificar um Estado japonês
independente, democrático, pacífico e neutro". Como se sabe, a China
comunista sustenta que o atual Estado japonês não possui nenhuma dessas
características. Assim, o texto é iniludível: a China, campeã da
não-ingerência, declara que vai intervir. É de estarrecer!
* * *
O
comunicado passa a tratar depois de Formosa.
Na
lógica dos princípios que afirma, a China deveria pedir um plebiscito em
Formosa, a fim de saber: 1) se o povo daquela ilha quer conservar sua
plena soberania, ou quer passar a mera província chinesa; 2) se os
habitantes de Formosa querem seu atual sistema político-social, ou optam
pelo comunismo.
Mas,
objetariam os comunistas chineses, se Formosa é uma parte da China, não
pode por si só declarar-se separada dela. Imaginemos que a objeção fosse
válida. Então, a ocasião seria excelente para se fazer um plebiscito em
ambas as Chinas, perguntando-lhes se querem unir-se, e que regime
político-social desejam. Mas disto, os chineses, cautíssimos, não dizem
uma só palavra...
Para
Pequim, o essencial é pôr fora de Formosa os americanos. Por isto afirma
que "todas as forças e instalações militares norte-americanas devem ser
retiradas de Taiwam". Desta forma, a ilha, desprotegida, forçada a algum
"acordo", se entregará melancolicamente ao jugo comunista!
* * *
Algum
leitor achará pouco acadêmicos os termos com que qualifico a atitude dos
comunistas chineses.
Respondo que meu propósito não é de ser acadêmico, mas de ser sério,
isto é, de chamar as coisas pelos seus nomes. "Seja vossa linguagem
sim-sim, não-não", ensina o Evangelho (São Mateus 5,37)
* * *
A
linguagem de Pequim, levando a tal ponto a desenvoltura na contradição,
em acordo de tal projeção, faz baixar o "tônus" da moralidade na vida
internacional. Pois, quando decai a lógica, com ela decai o direito.
E é a vida da
jungle, que começa!