Folha de S. Paulo, 20 de fevereiro de 1972
Fósforos acesos, canivetes em chuva, e um grande Bispo
O que
vem a ser precisamente o progressismo? Uma corrente sócio-econômica, ou
filosófico-teológica?
- Em
outros termos, seu objetivo último é a edificação, em escala mundial, de
uma sociedade igualitária, a supressão das fronteiras e dos exércitos, e
a conseqüente implantação de uma república universal? Ou nada disso está
em seu programa, e ele se restringe ao campo religioso?
-
Neste caso, o que visa ele, então? O estabelecimento de uma só religião
universal, abolidos os dogmas ou as crenças que separam hoje as diversas
religiões, com a correlata introdução de uma moral permissivista, que
importe na supressão de todos os preceitos? E ainda — por fim — a
instauração de uma estruturação eclesiástica horizontal e simplificada,
que confira ao povo a missão dirigente, até aqui a cargo da Hierarquia?
Se
fizermos estas perguntas à primeira pessoa genuinamente alfabetizada que
encontrarmos pela rua, provavelmente ela hesitará, emitirá respostas
incompletas e contraditórias, e terminará por dizer que não sabe bem.
Pois nesta confusão está — penso eu — a grande maioria de nosso público.
O mais das vezes, só especialistas estão em condições de responder à
pergunta com toda a clareza. Mas estes — a triste experiência o mostra —
evitam quase sempre ser claros. Os antiprogressistas, por medo, sabem
que uma resposta límpida e corajosa lhes atrairá sobre a cabeça uma
chuva de fósforos acesos, ou de canivetes de ponta para baixo. Os
progressistas, por prudência, não lhes convém a clareza, pois a obra das
trevas só nas trevas encontra condições para medrar.
E
assim, a grande maioria continua desinformada, hesitante, confusa. Com
vantagem, evidentemente, para o progressismo...
* * *
As
perguntas com que iniciei este artigo, nem sequer se costuma
apresentá-las com tanta precisão. A razão disto não é difícil de
encontrar. Com efeito, basta que sejam analisadas com atenção pelos
espíritos mais cultivados e penetrantes, para que a resposta surja,
neles, espontânea e límpida como um jorro de luz.
Com
efeito, não há que decidir se o progressismo é uma corrente de um ou de
outro tipo. O "ideal" temporal, que de início mencionei, e o "ideal"
religioso se postulam reciprocamente. Um é o corolário necessário do
outro. Quem aspira à república universal igualitária, tem a alma
forçosamente propensa para a religião universal igualitária. E
reciprocamente. É impossível a uma corrente de pensamento e de ação,
aceitando uma dessas duas bandeiras, não empunhar ao mesmo tempo a
outra. Atuando no campo político, tal corrente produzirá automaticamente
reflexos no campo religioso. E vice-versa.
Assim, o progressismo não é só sócio-econômico ou só
teológico-filosófico. Pela própria natureza das coisas, ele é
forçosamente uma coisa e outra.
* * *
Isto
posto, outro tema sobre o qual o grande público tem uma noção das mais
vagas, também se esclarece. É o do misterioso processo de "autodemolição
da Igreja", de que falou certa vez Pauto VI. — Como pode a Igreja
imortal ser sujeita a um processo de autodemolição? No que consiste ele?
pergunta-se muita gente. — O Pontífice não o disse.
Mas
já agora, em função do que acabamos de ver, a resposta é iniludível.
Essa demolição consiste na penetração velhaca, silenciosa, torrencial,
solapadora, da influência modernista nos meios católicos. Tal influência
visa substituir neles a fidelidade a uma Igreja única, hierárquica,
mestra infalível da verdade e do bem, em luta incessante contra os
cismas e as heresias, mantenedora de preceitos morais austeros e
imutáveis, pela adesão a uma Igreja sem dogmas nem hierarquia, aberta a
todos os erros como a todas as verdades, e em paz com todos os cismas e
todas as heresias. A influência progressista visa também extirpar da
alma dos fiéis o ideal tradicional da civilização cristã, projeção
temporal do próprio conceito de Igreja Católica, substituindo-o pelo
"ideal" de uma "civilização" comunista mais ou menos velada.
E
essa demolição merece ser chamada autodemolição, na medida em que é
levada a cabo pelos próprios filhos da Igreja, clérigos ou leigos.
Se
tudo isto fosse dito e explicado, não nos exíguos limites de um artigo
de jornal, mas em um livro sério, que expusesse e refutasse as
principais dentre as teses que formam o conteúdo doutrinário do
progressismo — um livro documentado, completo, atraente e acessível —
que imenso bem daí adviria para o Brasil!
* * *
Com
uma capa nobremente episcopal — báculo dourado sobre fundo de brocado
vermelho — este livro providencial acaba de sair a lume.
Não
temendo nem os fósforos acesos, nem a chuva de canivetes, escreveu-o D.
Antônio de Castro Mayer (*), Bispo de Campos: o Prelado que a imprensa
diária, tratando da recente reunião de Bispos em Itaipava, qualificava,
a justo título, de "o Bispo mais conservador do Brasil".
O
nome de D. Mayer é mencionado com admiração e respeito por todos
quantos, nas últimas décadas, vêm acompanhando de perto o
desenvolvimento da crise progressista no Brasil. O valor intelectual do
personagem, a profundidade de seus pensamentos, a coragem de suas
atitudes, não permitiam que tão grande vulto passasse despercebido.
Entretanto, o que nem todos sabem é que as obras de D. Mayer, traduzidas
em vários idiomas, lhe granjearam, fora de nosso País, uma larga
reputação. A tal ponto que na Europa como nas duas Américas há hoje
gente que fita a Diocese de Campos como o paraíso dos que querem
conservar bem erguido o pendão glorioso da luta contra o progressismo.
Desde
1950 até nossos dias, D. Antônio de Castro Mayer vem publicando
impressionantes documentos sobre os vários aspectos desta velada
ofensiva da religião universal e da república universal nos meios
católicos. Se sua grande voz tivesse sido ouvida como merece, o País não
teria sofrido os abalos perigosos a que o criptocomunismo católico o
expôs. E nosso horizonte ideológico não estaria tão vergonhosamente
poluído como nestes dias, marcados entretanto por um promissor progresso
econômico.
Reunindo em um volume intitulado "Por um Cristianismo Autêntico"
(Editora Vera Cruz, São Paulo, 1971), nove Cartas Pastorais, uma
Instrução Pastoral e uma Circular, D. Antônio de Castro Mayer acaba de
tomar uma medida de grande alcance para remediar os males que sua voz
procurou evitar.
Recomendo ao leitor que se muna desta obra, a qual não pode faltar em
sua biblioteca. Aconselho-o a que vá diretamente ao opulento índice
alfabético de matérias, na página 383 e seguintes. Nele verá o elenco de
todas as questões que o preocupam, juntamente com as indicações de onde
encontrar, no livro, a solução. Esta, enunciada sempre com clareza
lapidar, farta erudição, lógica robusta e, sobretudo, ortodoxia
imaculada, ajudá-lo-á a passar, com a alma ilesa, pela atmosfera
fuliginosa e deteriorada do mundo contemporâneo.
(*) D. Antonio de
Castro Mayer nasceu em Campinas, no Estado de São Paulo, em 20 de Junho
de 1904. Formou-se em teologia na Universidade Gregoriana de Roma
(1924-1927) onde foi ordenado Sacerdote em 30 de Outubro de 1927.
Assistente Geral da Acção Católica de São Paulo (1940), depois Vigário
geral da Arquidiocese (1942-1943), em 23 de Maio de 1948 foi sagrado
Bispo e nomeado coadjutor, com direito de sucessão, do Bispo de Campos.
Governou como Bispo a diocese de Campos até 1981. D. Antonio rompeu com
Plinio Corrêa de Oliveira e com a TFP em Dezembro de 1982. O fato
tornou-se logo público (Folha da Tarde, 10 de Abril de 1984; Jornal do
Brasil, 20 de Agosto de 1984) e liga-se à progressiva aproximação do
ex-Bispo de Campos à posição de Mons. Marcel Lefebvre, culminando com a
participação do mesmo D. Antonio de Castro Mayer nas consagrações
episcopais de Ecône em 30 de Junho de 1988, que o fizeram incorrer em
excomunhão latae sententiae. Morreu em Campos em 25 de Abril de 1991 (cfr.
"O Cruzado do Século XX - Plinio Corrêa de Oliveira", Roberto de Mattei,
com Prefácio do Cardeal Alfons Maria Stickler S.D.B., Editora
Civilização, Portugal, 1998).