Folha de S. Paulo, 13 de fevereiro de 1972
Fala
o "Rude Pravo"
O
"Rude Pravo" é um jornal de Praga, feito de modo especial para consumo
do público intelectualizado. Naturalmente, exprime ele o pensamento de
áreas governamentais, pois tal é a invariável condição da imprensa nos
países detrás da cortina de ferro.
Esta
circunstância confere invulgar interesse a um curioso comentário sobre
as "Nações Unidas da Europa", publicado por aquele jornal. Pois, como se
sabe, as autoridades de Praga seguem docilmente a "linha justa" de
Moscou. E dado que duas quantidades iguais a uma terceira são iguais
entre si, o pronunciamento do jornal checo envolve, de algum modo, o
próprio Kremlin.
É tão
sesquipedal — e ao mesmo tempo tão sintomático — o plano do "Rude Pravo"
para as "Nações Unidas da Europa", que não quero deixar de o comentar
com meus leitores.
* * *
É o
"Rude Pravo", naturalmente, muito favorável a uma Europa unida que
inclua todos os países do continente, tanto de aquém como de além
cortina de ferro. Para vitalizar as relações entre os dois blocos, o
jornal augura, idilicamente, toda espécie de intercâmbios: comercial,
científico, cultural, etc. Não falta sequer, à lista, a etérea
colaboração para a luta contra a poluição.
O
corolário natural de tão grande e mútua amizade é o desmantelamento do
Pacto de Varsóvia e da NATO. O que, diga-se de passagem, deixaria a
Europa Ocidental, ingênua, liberal e pacifista, à mercê do monstro
russo, sabido, agressivo e rigidamente ditatorial.
Voltando ao tema, a todos os planos para favorecer a paz, o "Rude Pravo"
só opõe uma restrição. O jornal admite a possibilidade de entrarem
turistas no mundo comunista. Mas, recusa categoricamente a hipótese do
intercâmbio de idéias e de cidadãos.
Para
justificar essa restrição, a folha checa declara que tal intercâmbio,
proposto pelo Ocidente, não passa de uma tentativa de subversão
ideológica contra o Oriente.
* * *
Não
espanta que as autoridades comunistas vejam com indiferença a entrada de
pequenos magotes de turistas, rigidamente arregimentados, fiscalizados e
dirigidos por guias a serviço da polícia. Merece especial comentário,
isto sim, o pânico dos potentados comunistas — transparente nas linhas
do "Rude Pravo" — quanto ao intercâmbio de pessoas e idéias.
Antes
de tudo, se tal intercâmbio continuar proibido a Europa permanecerá
dividida pela cortina de ferro. Isto é, pela mais formidável e sinistra
das fronteiras. Chamar de "unida" uma Europa assim dividida é um embuste
tão grosseiro, que toma ares de sarcasmo. Mas há mais.
Todo
o Ocidente — com a permissão ou tolerância dos respectivos governos — é
sacudido por uma obstinada e incessante propaganda comunista, soprada de
Moscou e de Pequim. Livros, revistas, jornais, corpos de balé, circos,
exposições flutuantes, tudo quanto de lá se queira enviar, é recebido
pachorrentamente, ou até com simpatia, no Ocidente.
- Por
que motivo, então, a penetração das idéias em curso no Ocidente não pode
ser recebida com análogas disposições no Oriente? A reciprocidade não é,
porventura, a condição mais elementar do bom convívio entre indivíduos,
como também entre nações?
* * *
Isto
tudo, do mero ponto de vista das relações internacionais.
De um
ponto de vista ainda mais profundo, o assunto deixa ver novos aspectos.
A
propaganda comunista se compraz em fazer crer aos ocidentais, que o
regime em que estes vivem, detestado pelas massas, cambaleia
perigosamente, e será derrubado por um furacão, de um momento para o
outro.
Contudo, até hoje não houve uma só eleição limpa em que os comunistas
tenham conquistado maioria de votos. E isto apesar de usarem e abusarem
da liberdade que se lhes concede.
-
Pergunto: é mesmo débil este regime? Ou na própria liberdade que concede
aos comunistas, afirma ele esplendidamente a solidez das raízes
populares e tradicionais sobre que assenta?
Sou
contrário à liberdade para os comunistas. Considero-a errada no plano
doutrinário, e, pejada de inconvenientes no prático. Mas isto não me
impede de pensar que, na atual conjuntura histórica, e nos quadros do
regime representativo, ela serve pelo menos para provar, de modo
ofuscante, a vitalidade da tradição cristã sobre a qual se firmam os
institutos da família e da propriedade.
Pelo
contrário, quão débil e timorato se mostra o comunismo ante a
perspectiva de uma propaganda adversa, a ser realizada nas terras por
eles escravizadas!
Hoje,
como nos piores tempos de Lenine e de Stalin, uma livraria que vendesse
material anticomunista seria lá considerado um perigo para a
instabilidade das instituições...
E
assim, comparado ao Ocidente, o regime comunista toma nitidamente o
aspecto de um frágil castelo de cartas!
Disto
não podem esquecer-se os que, entre nós, não cessam de pôr em contraste
nossa aparente debilidade, com a não menos aparente robustez dos regimes
comunistas.
A
esta altura do comentário, um problema salta aos olhos. Se estão assim
tão fracos os governos comunistas, tal se deve, pelo menos em grande
parte, à pobreza em que mantém a população. De outro lado, a tirania
graças à qual eles se conservam, não pode deixar de agravar sua
impopularidade. Por fim, informações dignas de toda a fé tem feito
constar que uma imensa "fome de Deus" vai surgindo no seio daquelas
infelizes populações que tem fome de tudo.
Assim, pergunto se a instauração das "nações unidas da Europa", máxime
nos termos preconizados pelo "Rude Pravo", seria realmente um meio de
assegurar a paz, ou uma jogada para perpetuar no poder as autoridades
comunistas desacreditadas e cambaleantes. Mais precisamente, indago se
seria, da parte do Ocidente um ato de prudência, ou de doida
condescendência com o ateísmo, a miséria e a tirania.
Parece-me que seria um ato de doida cumplicidade.
Mas
isto, de si, já é tema para outro artigo...