Folha de S. Paulo,
28 de
novembro de 1971
Empresa podre
Os
vários pronunciamentos feitos por Fidel Castro no Chile merecem ser
comentados com atenção. Mostram eles, em sua verdadeira fisionomia, o
homem e o regime nos quais certo número de brasileiros se obstinam em
ver um modelo e uma solução para as nações íbero-americanas.
Na
impossibilidade de realizar aqui esta vasta tarefa, restrinjo-me à
análise de um tópico particularmente frisante do discurso feito pelo
ditador em Rio Verde.
* * *
Este
tópico é particularmente interessante porque Fidel Castro apresentou
nele, à nação chilena, um velado ensaio de explicação dos repetidos
insucessos da economia cubana: — "A ambição de fazer muita coisa em
pouco tempo, levou-nos a reunir em Cuba muitos recursos, mas estes não
foram bem aproveitados. Reunimos milhares de tratores, mas estes não
receberam os cuidados devidos. Eram usados para tudo: para ir a uma
partida de beisebol e até para visitar a namorada. Improvisamos
operários e estes não cuidavam bem das máquinas".
--
Pelo visto, os tratores deveriam formar uma parte considerável dos
"muitos recursos" acumulados por Castro. Pois do contrário não se
justificaria que mencionasse tão especialmente os prejuízos decorrentes
do mau uso destes.
De
outro lado, uma ou outra ida excepcional, com o trator, a um campo de
beisebol ou à casa de uma namorada, não poderia danificar tão
notadamente tantos tratores.
Assim, a lamentação de Castro só pode ter sentido se admitirmos que a
grande quantidade de tratores por ele "reunidos" foram utilizados à
larga, para fins alheios ao serviço.
Ora,
tal abuso não pode passar sem uma explicação. E esta salta aos olhos.
Com
efeito, o que diríamos dos operários de uma empresa particular que, ao
longo dos meses e dos anos, espandongassem os tratores à força de
passear com eles? — Evidentemente, que tais operários carecem
inteiramente de meios de comunicação cômodos. Pois o uso habitual de um
trator não apresenta nem as qualidades técnicas, nem as comodidades
oferecidas por qualquer veículo normal, um ônibus que seja. Seriam,
pois, operários mal atendidos em suas necessidades.
E por
isto inconformados. Sem o menor amor à empresa, julgando-se no direito
de usar e abusar do que é dela para remediar as suas condições de
existência, entregam-se alegremente ao uso predatório dos tratores.
Se se
tratasse de uma empresa privada, D. Helder e o Pe. Comblin diriam que o
procedimento de tais operários é justo. Castro também o diria. Mas como
se trata, não de uma empresa privada, mas de um Estado comunista, a
coisa para os demagogos de toda sorte é bem diversa.
* * *
De
outro lado, numa empresa privada, tal abuso imporia imediatamente outra
pergunta: onde estão os chefes mediatos e imediatos, a quem caberia
coibir esses abusos? Qual a razão de sua inércia? Displicência?
Cumplicidade?
-- Em
um e outro caso, a conclusão só pode ser que se trata de uma empresa
podre, pois de alto a baixo, os homens encarregados da produção não
cumprem seu dever.
Mas,
como se trata de um Estado comunista, muitos "sapos" fogem à conclusão.
Dirão eles: a Cuba de Fidel não é empresa (o que realmente não é) nem
pode ser considerada podre (o que indiscutivelmente é).
* * *
Tal
impressão de empresa podre, dada pela Cuba vermelha, ainda mais se
reforça com a parte final da explicação de Fidel Castro. Os tratores
foram trazidos a Cuba, e foram atirados ao uso diário antes de ser
preparado o pessoal competente para zelar por eles.
A
Diretoria de uma sociedade anônima que apresentasse à Assembléia de
acionistas um relatório confessando análogo erro, se desacreditaria
inteiramente nos meios industriais e bancários, e correria todos os
riscos de não ter o seu mandato renovado. Pois só a má fé, a
incompetência ou o relaxamento podem ocasionar erro tão crasso. E como
tal erro só pode ser imputado, no caso de Cuba, às mais altas cúpulas
administrativas e financeiras, a podridão, que constatamos existir no
operariado e nos escalões administrativos baixos, médios ou altos,
também domina os mais altos escalões em que a administração se confunde
com a direção do próprio Estado.
Insistimos: o Estado e a administração cubanos estão podres. Alargando
um pouco o sentido da palavra "empresa". Cuba é uma empresa podre.
--
Mas por que é podre essa empresa? Pela corrupção dos homens que a
constituem? — Em alguma medida, muito provavelmente. Mas seria muito
superficial quem visse nessa podridão apenas o fruto da corrupção.
Há
empresas que funcionam maravilhosamente, se bem que a moralidade de seus
dirigentes seja objetável. "O olho do dono engorda o gado", diz um
provérbio. Se bem que o proprietário possa não ser honesto, tem
interesse em tirar de sua empresa o máximo de rendimento. Por isso,
escolhe dirigentes ativos e ambiciosos, que anseiem por salários bons,
gratificações, e promoções. E esses, por sua vez, procuram selecionar e
estimular o operariado de maneira a justificar perante o patrão as
melhorias a que aspiram. Os operários, por sua vez, lutam por produzir
muito, ganhar bem e prosperar. Nesta impostação, a empresa é, de alto a
baixo, uma coligação de interesses individuais legítimos. E quando esta
é a concepção reinante na empresa, a ordem, a atividade asseguram o
êxito do conjunto.
Para
medir o alcance prático dessa concepção de empresa, basta ver o
progresso da economia brasileira.
Cuba
é uma empresa podre porque lhe falta "o olho do dono", o estímulo de
ganho individual crescente. Todo o mecanismo de produção da Ilha está a
cargo de uma imensa pirâmide de funcionários públicos mal pagos, e sem
possibilidade de enriquecer. E não se pode pedir ao funcionário público
— máxime em tais condições — mais do que a simples correção. O dinamismo
estuante, entusiasmado, heróico, este só se pode esperar, em via de
regra, dos homens estimulados pelo desejo legítimo de lucro e
considerável ascensão.
* * *
Assim, se explica que a modorra tenha invadido a máquina de produção e
gerado a miséria em Cuba. Como aliás — por análogo processo — em todos
os países comunistas, inclusive o querido e infeliz Chile, que começa
agora a estertorar nas mãos de Allende.
Ora,
a miséria tem, por sua vez, como fruto, a tirania. Para entender bem
esta afirmação, voltemos ao exemplo cubano. Como toda a máquina de
fiscalização e propulsão não funciona, a única saída é a chibata. A
solução é sempre esta para o trabalho escravo. Seja o escravo de algum
régulo oriental, seja o escravo de algum déspota comunista moderno. A
diferença entre um e outro está em que a chibata do oriental foi
substituída, nos países comunistas, por todo um sistema de torturas
morais e físicas que bem conhecemos: espionagem omnipresente,
insegurança geral, trabalho forçado, sovas nos departamentos de
incrementos ao trabalho, campos de concentração, etc. Para os
absolutamente recalcitrantes, o "paredón"....
A
necessidade tão imperiosa e tão natural do "olho do dono" e de promoções
e aumentos de salários, que permitam ao trabalhador fazer economias, o
que prova tudo isto?
--
Prova a imensa, a legítima, a natural tendência do homem a ser
proprietário, a trabalhar direta e imediatamente para si e para a sua
família. Pois a caridade começa em casa: "quem criou Mateus que o nine",
diz o velho provérbio. E outro recomenda: "Mateus, primeiro os teus".
A
doutrina católica ensina que devemos amar o próximo.
Mas
na ordem da proximidade, de sorte que nosso primeiro dever é para
conosco e nossas famílias.
O
socialismo e o comunismo abstraem dessas realidades naturais e perenes.
Fecham ao trabalhador a possibilidade de economizar e tornar-se
proprietário, e ao empresário a de acrescer as propriedades que possui.
Ninguém pode, assim, proteger o futuro da família, por meio da herança,
nem melhorar as condições de existência, de que desfruta.
Resultado: é o de Cuba, o da Rússia, o do Chile, o de toda a parte em
que a produção fica inteiramente entregue a uma máquina estatal.
Em
outros termos, Cuba é uma empresa podre porque tirou ao homem de
trabalho os estímulos decorrentes de duas instituições naturais: a
propriedade e a família.
* * *
Boa
lição para os que imaginam que é combatendo a família e a propriedade
que se promove o bem do povo.