Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 1971

Berlinger, Amendola e Cia.

Parece-me interessante tratar hoje de duas notícias, concernentes ao PC italiano, dadas pela imprensa paulista sem o realce que, a meu ver, lhes corresponde.

Como se sabe, o mais importante dos partidos comunistas da Europa Ocidental é — pelo grande número de eleitores — o italiano. Desfruta este, assim, de discreta mas indiscutível liderança sobre os seus congêneres.

A estrutura interna de um partido comunista é muito diversa da que se adota habitualmente nos partidos de inspiração liberal-democrata. Enquanto nestes últimos a tendência liberal leva à subestima da disciplina partidária, e portanto, à ineficácia relativa dos órgãos diretivos, o caráter totalitário da doutrina comunista dá origem a uma disciplina férrea e hipertrofia ipso facto o poder dos órgãos diretivos.

Por todas estas razões, uma reunião da Comissão Central do PCI é algo de muito sério, e produz habitualmente efeitos sensíveis na marcha do comunismo na Itália, e até — em certos casos — na conduta dos PCs da Europa livre.

Foi numa reunião destas, que o "camarada" Enrico Berlinger, titular do importante cargo de subsecretário do PCI, fez uma proposta, que passo a resumir em alguns itens:

1) que os partidos comunistas da Europa Ocidental acentuem mais a sua independência em relação a Moscou e Pequim;

2) que seja adotado pelo PCI e por seus congêneres da Europa livre um neocomunismo, o qual se diferencie do comunismo clássico pelo seguinte programa de governo:

a) autêntico pluripartidarismo;

b) autonomia aos sindicatos dos trabalhadores, face aos órgãos governamentais;

c) sobrevivência de uma parcela (indefinida, note-se bem) de atuação para a empresa privada, no conjunto da economia nacional;

d) liberdade individual, liberdade de religião, de cultura, de arte e de ciência.

A importância da proposta, feita por personagem tão qualificado, em órgão supremo do partido líder do comunismo europeu, é incalculável. Pois se ela for bem aceita, o comunismo terá sofrido a maior "heresia" de sua história, já que o neocomunismo dele se diferencia em pontos de uma importância óbvia.

-- Mas, pergunto, essa "heresia" será autêntica? Ou constitui uma manobra?

* * *

-- Em outros termos, a proposta do "camarada" Berlinger constitui um ato de revolta contra a CC do PCI, ou é um balão de ensaio lançado de comum acordo com os demais integrantes desta?

Normalmente, a proposta "herética" e explosiva deveria ter sido acolhida com indignação por todos os presentes. Ela deveria ter abalado as bases do partido e causado protestos em toda a Itália. Pequim e Moscou deveriam ter "excomungado" o "herege". E os diversos PCs europeus, por sua vez deveriam ter declarado de público sua repulsa às propostas de Berlinger. Só isto é que seria lógico se Berlinger tivesse agido por conta própria, sem prévio acordo com ninguém.

Ora, muito ao contrário, os jornais não nos referem uma só manifestação de repulsa — ou pelo menos de surpresa — da parte de qualquer governo, partido ou grupo comunista.

Logo, parece que todos estavam concertados de antemão com o que Berlinger iria dizer. A sugestão deste indica, pois, um rumo que o comunismo internacional deseja realmente ver seguido pelos PCs da Europa livre.

* * *

-- Que lucraria, com tão sinuosa manobra, a causa do comunismo? — objetará algum leitor.

Para responder, é preciso considerar antes de tudo a analogia entre o plano sugerido por Berlinger e a "revolução na liberdade", que Allende tem apregoado no Chile.

Allende não tem feito mistério dos motivos táticos que o vão levando a seguir a via de relativa liberdade na implantação da revolução chilena. Ainda recentemente reconheceu ele que "conseguira o governo, mas não o poder" no Chile (cf. "O Estado de S. Paulo" de 5-11-71). O que obviamente lhe impõe a árdua tarefa de se servir agora do governo para alcançar o poder. Neste processo, é-lhe impossível agir pela força, pois esta é um corolário do poder, que ele ainda não possui.

Assim, Allende é obrigado a conceder ao adversário precisamente aquela quota mínima de liberdade sem a qual este se revoltaria.

O governo trava, desse modo, com a oposição, uma luta desigual: os melhores trunfos estão do lado dele. Isto não obstante, uma luta, ainda quando desigual, pode trazer surpresas para o mais forte. Não é de todo impossível que Allende seja derrotado. Em tal caso — ele mesmo já o disse — só lhe restará "apagar as luzes e voltar para casa" (cf. "O Estado de S. Paulo", 7-11-71).

Ainda nessa hipótese, a causa comunista terá ganho muito com a passagem de Allende pela suprema Magistratura. Com efeito vai ele fazendo uma série de reformas estruturais, as quais vão impondo ao Chile uma configuração sempre mais afim com o marxismo.

O Chile de pós-Allende estará incomparavelmente mais preparado para uma nova investida comunista do que o Chile do estágio pré-Allende.

Quer se mantenha, quer não, o governo marxista terá prestado com a "revolução na liberdade", um inestimável serviço à causa comunista no Chile.

* * *

A "revolução na liberdade" constitui, assim, uma jogada velhaca. Não espanta que Moscou e Pequim a queiram repetir agora na Europa livre.

De fato, como no Chile, também na Europa Ocidental nenhum PC jamais obteve uma autêntica maioria eleitoral. Para ele, o único modo de galgar o poder é uma coligação no estilo da Unidade Popular, que levou Allende ao poder, isto é, formada por marxistas, socialistas, pedecistas e radicais.

Ora, acontece que, na Europa livre, as esquerdas não comunistas se têm mostrado sempre relutantes em aceitar uma coligação com o comunismo. Impressionadas pelo que ocorreu na Checoslováquia e em outros países, temem elas que o PC, uma vez no poder, instaure uma ditadura e as expulse do governo.

Nestas condições, ou o comunismo finge mudar de face e de mentalidade apresentando-se à chilena, e propondo às esquerdas uma vasta coligação para fazer a "revolução na liberdade", ou continuará estacionário.

Esta contingência tática explica o "new look" comunista lançado por Enrico Berlinger com a anuência tácita — mas quão significativa e prestigiosa — de Moscou, de Pequim, e de todo o comunismo euro-ocidental.

* * *

Isto, que no terreno da especulação ideológico-política é tão claro, já obteve, na ordem dos fatos, uma confirmação eloqüente. Em reunião pouco posterior, da CC do PCI o "camarada" Giorgio Amendola propôs uma convergência eleitoral entre o que ele chama as "três grandes forças políticas" da Europa Ocidental, isto é, o comunismo, o socialismo, e a democracia-cristã.

Segundo Amendola, esta convergência teria como fito obter a vitória das esquerdas, aliadas ou coligadas, nas importantíssimas eleições que se realizarão em 1973, na Itália, na França, na Alemanha Ocidental e na Grã-Bretanha. Espera, então, Amendola, que a Europa Ocidental, dirigida pelos governos nascidos dessas eleições, possa acelerar muito a formação dos Estados Unidos da Europa e inaugurar um sistema de segurança coletivo, que supere a cortina de ferro. O que implicaria — comento eu — em expulsar da Europa os norte-americanos, acabar com a cortina de ferro, e fundir as forças da Europa Ocidental e Oriental num só todo.

Em outros termos, o fim visado por Giorgio Amendola é uma Europa Ocidental dirigida por Allendes, política e militarmente integrada num bloco em que a maior potência seria a Rússia!

* * *

Como se vê, vale largamente a pena, para o comunismo, lançar na Europa Ocidental a fórmula chilena.

Mas, como já vimos, é preciso, para isto, que o comunismo mude de face. Daí o neocomunismo blandicioso, lançado por Enrico Berlinger.

Em outros termos, o plano de Amendola explica a proposta de Berlinger. Uma e outra coisa juntas explicam, por sua vez, a conivência muda, generalizada, impressionante, de todos os escalões do comunismo internacional...

-- Mas, objetará algum leitor, nada disso é viável. No Chile, o combate à iniciativa particular e à propriedade individual já vai produzindo a miséria. E esta acabará por derrubar Allende. O mesmo acontecerá na Europa...

-- Que a miséria derrube sempre e necessariamente um governo: eis uma tese discutível! Se ela fosse sempre válida, como explicar que, em todos os países nos quais o comunismo firma pé, a miséria se introduz e o regime comunista não cai?

No Chile, Allende só cairá se a miséria chegar ao auge antes de os detentores do governo terem alcançado o poder. A jogada de Allende consiste em, na corrida ao poder, chegar antes de a pobreza se ter tornado insuportável. Isto alcançado, ele poderá manter-se pela força bruta.

O mesmo princípio, mutatis mutandis, vale em qualquer parte do mundo. Inclusive os da Europa Ocidental...

Para isto trabalham Berlinger, Amendola e Cia.


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