Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 1971

O bom rapaz

Encontrei-me há dias, com um jovem meu conhecido. Jovem, aliás, um tantinho passado, pois anda lá pelos trinta e cinco anos. Desanuviado, esportivo, risonho, apertou-me a mão com calor. No ambiente em que ele vive, todos gostam dele. Até com certo entusiasmo, porque sua presença é divertida e difunde sempre, em torno de si, otimismo e bom humor. Ele personifica o que, em certo ambientes, se chama o bom rapaz.

Estávamos sós na sala de espera de um consultório. O assunto entre nós faltava. Instintivamente, fixamos ambos um jornal que estava sobre a mesa. Uma grossa manchete anunciava a admissão da China comunista na ONU e a expulsão de Formosa. O "bom rapaz" deu um riso alegre, e me olhou certo de encontrar em mim o reflexo de sua satisfação. Disfarçando, perguntei-lhe num tom neutro: "Você gostou, então?" Ele repetiu o mesmo riso e disse: — "O golpe no velho Chiang Kai-shek foi um pouco forte. Mas acho que, por fim, tudo vai sair bem".

Indaguei por que, e ele explicou: — "As nações comunistas até agora têm sido tratadas com inabilidade pelo mundo ocidental. Elas têm lá uma filosofia e um modo de viver discutíveis, com que não concordo, pois fui educado em outro ambiente. Mas, enfim, eles por lá são daquele jeito. E têm nas mãos a bomba atômica. O resultado é que temos que conviver com eles, sob pena de levarmos a bomba atômica na cabeça. Assim, o que deveríamos ter feito desde o começo era distendê-los por concessões bem estudadas. Fazer-lhes compreender, assim, que somos irmãos, e que entre irmãos tudo se arranja. Não duraria muito e eles estariam propensos a um grande acerto geral".

Eu mantinha, o quanto possível, uma fisionomia neutra. Queria ver até onde iria o "bom rapaz". Ponderei, apenas, com voz conciliatória: — "Mas bomba atômica o Ocidente também a tem. Por que os comunistas também não têm medo de nós? Por que também não nos fazem concessões? Toda política de concessões deve ser baseada em reciprocidade. E não vejo isto neles".

O "bom rapaz" tinha a resposta na ponta da língua: — "O centro de minhas concepções está em que o mundo ocidental é culto, civilizado, rico" — explicou ele. "O mundo comunista é bárbaro, pobre, revoltado. A política das concessões, o bárbaro não a sabe fazer. É preciso que ela comece do lado civilizado. De sorte que compete-nos a nós ceder, e ceder muito. É o impacto das grandes concessões que produzirá fatalmente, no ânimo dos comunistas, o grande degelo. Virão as negociações, e assim o mundo terá a paz".

Explicando-me tudo isso, o "bom rapaz" tinha, ao mesmo tempo, um ar cordial e triunfante.

Sempre com a mesma neutralidade, perguntei-lhe então:

-- "Mas afinal, você acha que essas negociações compradas a custa de tanto ceder, dariam resultado? Não poderia dar-se o caso de os neobárbaros exigirem de nós o impossível?"

O "bom rapaz", ainda desta vez tinha a respostas na ponta da língua: — "Dr. Plinio, é preciso confiar no bom senso e na bondade de coração de todos os homens. Sem esta confiança, o mundo se torna um inferno. É mais generoso admitir que os comunistas se comoverão com tantas concessões. O Sr. é cético a respeito das negociações. Tudo é negociável e arranjável neste mundo. Quando um não quer, dois não brigam".

Algo da bonomia do "bom rapaz" tinha minguado, à vista de minhas restrições. Um começo de insegurança despontava nele. Sempre com a mesma amenidade perguntei-lhe: — "É bem certo, meu ‘bom rapaz’, que tudo neste mundo é negociável? Se os neobárbaros quiserem nos impedir de praticar a Religião, devemos ceder? Se quiserem torcer a ordem natural das coisas, acabando com a família e a propriedade, devemos aceitar? Se, para impor seu regime antinatural, eles quiserem abrir, por toda parte, prisões e campos de concentração, devemos concordar? Se o regime comunista resultar, para nós, na miséria geral que existe em Cuba, e vai ganhando o Chile, devemos aceitar também? Que concessões você imagina em tudo isto?"

O "bom rapaz" estava vermelho, gaguejava. Meus argumentos chocavam a fundo o seu modo de ser. Ele retrucou: — "O sr. é um professor, é um homem muito mais velho do que eu. Não sei responder-lhe. Mas, enfim, Nixon, o maior homem do século XX, segue exatamente o caminho com que simpatizo. Analise o sr. cada um de seus atos, e verá que só se justificam pela generosa esperança de que o adversário acabará por se comover e aceitar um grande acordo. O Sr. não imagina entender melhor de diplomacia do que o maior homem de nosso século".

Acuado, o "bom rapaz" saíra da pista da lógica para o mero argumento de autoridade. Já agora, toda a sua argumentação se baseava em um só ponto: a infalibilidade de Nixon...

Continuei de mansinho: — "Mas esse ‘homem máximo’ de nosso século nem sempre pensou assim. Em anteriores campanhas eleitorais, ele ostentou um anticomunismo militante". O "bom rapaz" me disse: — "É verdade. Mas foi derrotado e viu que estava errado. Seu povo, o maior do mundo, lhe indicava o caminho dos arranjos. Aceitou a filosofia de seus compatriotas, e ei-lo que vai mar alto a caminho da solução. O Sr. pensa que Nixon está tão aborrecido assim com o resultado da votação na ONU? Nunca! Esta o dispensou da responsabilidade por muitas concessões que quereria fazer, mas não ousava. Alguns dizem que a votação na ONU esvaziou os objetivos da sua viagem a Pequim e a Moscou. Penso o contrário. Com isto, o caminho ficou aplainado: ele poderá ir mais longe do que quis. E será o degelo total".

O "bom rapaz" estava de novo alegre. Perguntei-lhe: — "Mas, então, que concessão seria essa?" Iluminado como um profeta do otimismo, disse-me: — "Dr. Plinio, o mundo caminha para a convergência. É preciso que cheguemos ao meio termo entre nosso regime e o comunista. Entre os dissemelhantes não há paz. Ela só existe entre semelhantes. Caminhemos uns tantos passos e eles caminharão outros. Encontrar-nos-emos lá pelas alturas de um socialismo muito avançado, com uma estrutura familiar muito flexível e adelgaçada. Será o mundo da paz, construído sobre a renúncia a todas as doutrinas, a todas as ideologias, a todos os sistemas rígidos". Uma chispa de dureza cortou seu júbilo, e a ameaça saiu brutal: — "Todos terão que se conformar, e quem não se conformar será esmagado".

Chegara a minha vez. Eu disse então ao "bom rapaz": — "Até agora eu o deixei falar continuamente. Você é entusiasta do diálogo, não é? Neste caso deixe-me falar alguns minutos".

O "bom rapaz" se sentia insultado vendo-me argumentar contra Nixon e contra ele. Fumava nervosamente. Fingindo prestar mais atenção nas espirais de fumaça que ele soltava do que no que eu começava a dizer.

-- "Meu ‘bom rapaz’, a sociedade humana é como um organismo vivo. Sua sanidade está na dependência de regras imperiosas e sutis. Para conhecer estas regras, filósofos, teólogos, sociólogos, economistas de todos os tempos, têm multiplicado seus esforços. Divididos em escolas, vêm eles travando entre si, ao longo dos séculos, uma polêmica que constitui uma das mais altas produções da mente humana.

"Cumpre-nos escolher, entre as várias escolas, a que nos ensina a verdadeira ordem natural criada por Deus. Se não a encontramos, tudo virá por terra. Voltando à comparação da sociedade com o corpo vivo, um doente que raciocinasse como você, posto entre dois médicos que discordam sobre o diagnóstico de seu mal, mandaria um e outro às favas, dizendo que não são senão homens de teoria. Procuraria soluções "práticas", misturando os remédios de um com os do outro, e os ingeriria. Seria o suicídio.

"Desdenhar assim os médicos não lhe pareceria mais próprio de um ignorante, ou até de um bárbaro, do que de um homem civilizado?"

O "bom rapaz" estava furioso: — "Positivamente, Dr. Plinio, com o Sr. e com sua gente da TFP não há acordo possível. O único remédio é silenciá-los. Não gosto de gente doutrinária e raciocinante. Estamos na era dos homens práticos, que resolvem tudo segundo a experiência de cada dia".

-- "Meu caro, é precisamente o que um curandeiro pensa de um cientista. Você abre a era dos curandeiros. Perdoe-me a franqueza, mesmo vou mais longe: você abre a era dos bárbaros. Pois declarar caduca a lógica e abolido o pensamento é instaurar entre os homens uma vida incompreensível, dilacerada por lutas obscuras e intérminas, tocadas ao ritmo selvagem de cobiças, de ressentimentos, de ódios que ninguém entende, e portanto não pode estancar.

"Você imagina que os bárbaros estão só do lado de lá; olhe para si mesmo e para os que pensam como você. Compare. Os bárbaros do lado de lá pensam errado. Você e os bárbaros do lado de cá pensam que não se deve pensar. Quais são os mais bárbaros? — Vocês!"

O "bom rapaz" ficara quieto. Eu também. Neste momento, do consultório saía, apoiada sobre uma bonita e delicada bengala, uma senhora muito idosa. O médico que a acompanhava disse: — "É uma questão de escola médica. Meu colega "X" segue outra escola. A senhora precisa escolher". — "Vou rezar e pensar" — disse a velhota. "Durante toda a minha vida, rezei e pensei antes de escolher. E sempre deu certo". O médico sorriu. "Por isso a senhora chegou tão forte a essa idade..." Olhei para o "bom rapaz": ele continuava a fumar descontraidamente, e roía nervosamente uma unha.

-- "Que bárbaro!" — pensei eu...


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