Folha de S. Paulo,
7 de
novembro de 1971
O bom
rapaz
Encontrei-me há dias, com um jovem meu conhecido. Jovem, aliás, um
tantinho passado, pois anda lá pelos trinta e cinco anos. Desanuviado,
esportivo, risonho, apertou-me a mão com calor. No ambiente em que ele
vive, todos gostam dele. Até com certo entusiasmo, porque sua presença é
divertida e difunde sempre, em torno de si, otimismo e bom humor. Ele
personifica o que, em certo ambientes, se chama o bom rapaz.
Estávamos sós na sala de espera de um consultório. O assunto entre nós
faltava. Instintivamente, fixamos ambos um jornal que estava sobre a
mesa. Uma grossa manchete anunciava a admissão da China comunista na ONU
e a expulsão de Formosa. O "bom rapaz" deu um riso alegre, e me olhou
certo de encontrar em mim o reflexo de sua satisfação. Disfarçando,
perguntei-lhe num tom neutro: "Você gostou, então?" Ele repetiu o mesmo
riso e disse: — "O golpe no velho Chiang Kai-shek foi um pouco forte.
Mas acho que, por fim, tudo vai sair bem".
Indaguei por que, e ele explicou: — "As nações comunistas até agora têm
sido tratadas com inabilidade pelo mundo ocidental. Elas têm lá uma
filosofia e um modo de viver discutíveis, com que não concordo, pois fui
educado em outro ambiente. Mas, enfim, eles por lá são daquele jeito. E
têm nas mãos a bomba atômica. O resultado é que temos que conviver com
eles, sob pena de levarmos a bomba atômica na cabeça. Assim, o que
deveríamos ter feito desde o começo era distendê-los por concessões bem
estudadas. Fazer-lhes compreender, assim, que somos irmãos, e que entre
irmãos tudo se arranja. Não duraria muito e eles estariam propensos a um
grande acerto geral".
Eu
mantinha, o quanto possível, uma fisionomia neutra. Queria ver até onde
iria o "bom rapaz". Ponderei, apenas, com voz conciliatória: — "Mas
bomba atômica o Ocidente também a tem. Por que os comunistas também não
têm medo de nós? Por que também não nos fazem concessões? Toda política
de concessões deve ser baseada em reciprocidade. E não vejo isto neles".
O
"bom rapaz" tinha a resposta na ponta da língua: — "O centro de minhas
concepções está em que o mundo ocidental é culto, civilizado, rico" —
explicou ele. "O mundo comunista é bárbaro, pobre, revoltado. A política
das concessões, o bárbaro não a sabe fazer. É preciso que ela comece do
lado civilizado. De sorte que compete-nos a nós ceder, e ceder muito. É
o impacto das grandes concessões que produzirá fatalmente, no ânimo dos
comunistas, o grande degelo. Virão as negociações, e assim o mundo terá
a paz".
Explicando-me tudo isso, o "bom rapaz" tinha, ao mesmo tempo, um ar
cordial e triunfante.
Sempre com a mesma neutralidade, perguntei-lhe então:
--
"Mas afinal, você acha que essas negociações compradas a custa de tanto
ceder, dariam resultado? Não poderia dar-se o caso de os neobárbaros
exigirem de nós o impossível?"
O
"bom rapaz", ainda desta vez tinha a respostas na ponta da língua: —
"Dr. Plinio, é preciso confiar no bom senso e na bondade de coração de
todos os homens. Sem esta confiança, o mundo se torna um inferno. É mais
generoso admitir que os comunistas se comoverão com tantas concessões. O
Sr. é cético a respeito das negociações. Tudo é negociável e arranjável
neste mundo. Quando um não quer, dois não brigam".
Algo
da bonomia do "bom rapaz" tinha minguado, à vista de minhas restrições.
Um começo de insegurança despontava nele. Sempre com a mesma amenidade
perguntei-lhe: — "É bem certo, meu ‘bom rapaz’, que tudo neste mundo é
negociável? Se os neobárbaros quiserem nos impedir de praticar a
Religião, devemos ceder? Se quiserem torcer a ordem natural das coisas,
acabando com a família e a propriedade, devemos aceitar? Se, para impor
seu regime antinatural, eles quiserem abrir, por toda parte, prisões e
campos de concentração, devemos concordar? Se o regime comunista
resultar, para nós, na miséria geral que existe em Cuba, e vai ganhando
o Chile, devemos aceitar também? Que concessões você imagina em tudo
isto?"
O
"bom rapaz" estava vermelho, gaguejava. Meus argumentos chocavam a fundo
o seu modo de ser. Ele retrucou: — "O sr. é um professor, é um homem
muito mais velho do que eu. Não sei responder-lhe. Mas, enfim, Nixon, o
maior homem do século XX, segue exatamente o caminho com que simpatizo.
Analise o sr. cada um de seus atos, e verá que só se justificam pela
generosa esperança de que o adversário acabará por se comover e aceitar
um grande acordo. O Sr. não imagina entender melhor de diplomacia do que
o maior homem de nosso século".
Acuado, o "bom rapaz" saíra da pista da lógica para o mero argumento de
autoridade. Já agora, toda a sua argumentação se baseava em um só ponto:
a infalibilidade de Nixon...
Continuei de mansinho: — "Mas esse ‘homem máximo’ de nosso século nem
sempre pensou assim. Em anteriores campanhas eleitorais, ele ostentou um
anticomunismo militante". O "bom rapaz" me disse: — "É verdade. Mas foi
derrotado e viu que estava errado. Seu povo, o maior do mundo, lhe
indicava o caminho dos arranjos. Aceitou a filosofia de seus
compatriotas, e ei-lo que vai mar alto a caminho da solução. O Sr. pensa
que Nixon está tão aborrecido assim com o resultado da votação na ONU?
Nunca! Esta o dispensou da responsabilidade por muitas concessões que
quereria fazer, mas não ousava. Alguns dizem que a votação na ONU
esvaziou os objetivos da sua viagem a Pequim e a Moscou. Penso o
contrário. Com isto, o caminho ficou aplainado: ele poderá ir mais longe
do que quis. E será o degelo total".
O
"bom rapaz" estava de novo alegre. Perguntei-lhe: — "Mas, então, que
concessão seria essa?" Iluminado como um profeta do otimismo, disse-me:
— "Dr. Plinio, o mundo caminha para a convergência. É preciso que
cheguemos ao meio termo entre nosso regime e o comunista. Entre os
dissemelhantes não há paz. Ela só existe entre semelhantes. Caminhemos
uns tantos passos e eles caminharão outros. Encontrar-nos-emos lá pelas
alturas de um socialismo muito avançado, com uma estrutura familiar
muito flexível e adelgaçada. Será o mundo da paz, construído sobre a
renúncia a todas as doutrinas, a todas as ideologias, a todos os
sistemas rígidos". Uma chispa de dureza cortou seu júbilo, e a ameaça
saiu brutal: — "Todos terão que se conformar, e quem não se conformar
será esmagado".
Chegara a minha vez. Eu disse então ao "bom rapaz": — "Até agora eu o
deixei falar continuamente. Você é entusiasta do diálogo, não é? Neste
caso deixe-me falar alguns minutos".
O
"bom rapaz" se sentia insultado vendo-me argumentar contra Nixon e
contra ele. Fumava nervosamente. Fingindo prestar mais atenção nas
espirais de fumaça que ele soltava do que no que eu começava a dizer.
--
"Meu ‘bom rapaz’, a sociedade humana é como um organismo vivo. Sua
sanidade está na dependência de regras imperiosas e sutis. Para conhecer
estas regras, filósofos, teólogos, sociólogos, economistas de todos os
tempos, têm multiplicado seus esforços. Divididos em escolas, vêm eles
travando entre si, ao longo dos séculos, uma polêmica que constitui uma
das mais altas produções da mente humana.
"Cumpre-nos escolher, entre as várias escolas, a que nos ensina a
verdadeira ordem natural criada por Deus. Se não a encontramos, tudo
virá por terra. Voltando à comparação da sociedade com o corpo vivo, um
doente que raciocinasse como você, posto entre dois médicos que
discordam sobre o diagnóstico de seu mal, mandaria um e outro às favas,
dizendo que não são senão homens de teoria. Procuraria soluções
"práticas", misturando os remédios de um com os do outro, e os
ingeriria. Seria o suicídio.
"Desdenhar assim os médicos não lhe pareceria mais próprio de um
ignorante, ou até de um bárbaro, do que de um homem civilizado?"
O
"bom rapaz" estava furioso: — "Positivamente, Dr. Plinio, com o Sr. e
com sua gente da TFP não há acordo possível. O único remédio é
silenciá-los. Não gosto de gente doutrinária e raciocinante. Estamos na
era dos homens práticos, que resolvem tudo segundo a experiência de cada
dia".
--
"Meu caro, é precisamente o que um curandeiro pensa de um cientista.
Você abre a era dos curandeiros. Perdoe-me a franqueza, mesmo vou mais
longe: você abre a era dos bárbaros. Pois declarar caduca a lógica e
abolido o pensamento é instaurar entre os homens uma vida
incompreensível, dilacerada por lutas obscuras e intérminas, tocadas ao
ritmo selvagem de cobiças, de ressentimentos, de ódios que ninguém
entende, e portanto não pode estancar.
"Você
imagina que os bárbaros estão só do lado de lá; olhe para si mesmo e
para os que pensam como você. Compare. Os bárbaros do lado de lá pensam
errado. Você e os bárbaros do lado de cá pensam que não se deve pensar.
Quais são os mais bárbaros? — Vocês!"
O
"bom rapaz" ficara quieto. Eu também. Neste momento, do consultório
saía, apoiada sobre uma bonita e delicada bengala, uma senhora muito
idosa. O médico que a acompanhava disse: — "É uma questão de escola
médica. Meu colega "X" segue outra escola. A senhora precisa escolher".
— "Vou rezar e pensar" — disse a velhota. "Durante toda a minha vida,
rezei e pensei antes de escolher. E sempre deu certo". O médico sorriu.
"Por isso a senhora chegou tão forte a essa idade..." Olhei para o "bom
rapaz": ele continuava a fumar descontraidamente, e roía nervosamente
uma unha.
-- "Que bárbaro!" —
pensei eu...