Folha de S. Paulo,
24 de
outubro de 1971
A
cascata
Senti-me ufano de ser brasileiro, ao ler na imprensa diária a declaração
do senador Wilson Gonçalves (ARENA, Ceará), de que, no Brasil, um
plebiscito a favor do divórcio teria como desfecho forçoso a derrota do
divorcismo. Explicou o parlamentar que nas classes menos elevadas da
sociedade (obviamente as mais numerosas), a maioria é antidivorcista.
Assim, tem razão o senador. A atitude antidivorcista das camadas
modestas da população bem prova que elas não se deixam arrastar pelas
grandes campanhas internacionais, que promovem sob todas as formas a
dissolução da nossa civilização. Fiéis à tradição cristã brasileira,
feita de equilíbrio, estabilidade e bom senso, elas continuam a caminhar
com passo seguro no glorioso caminho trilhado por nossos maiores.
* * *
Esta
reflexão me leva a pensar na tão debatida questão do divórcio. Não para
entrar no âmago dela, mas apenas para fazer algumas reflexões sobre o
feitio de espírito de certas pessoas muito características dos dias
presentes. Entremos pois, na matéria.
* * *
Uma
das organizações mais provectas da Espanha atual é a "Hermandad
Sacerdotal Española". Tem ela intervindo com rara felicidade e energia
nos acontecimentos importantes de seu país. Sabendo evitar com cuidado
qualquer subordinação a interesses políticos, sua voz se tem alçado com
um nobre timbre de autoridade e desassombro, a propósito de várias
controvérsias que dizem respeito à Igreja e à causa da civilização
cristã.
No
boletim "Dios lo quiere", editado pela entidade em Madri (n.º 12, junho
de 1971), leio o seguinte trecho do telegrama enviado por presidentes de
diversas associações católicas aos membros do Episcopado espanhol, às
Autoridades espanholas e à Santa Sé:
"Gravemente preocupados por informações dignas de crédito, denunciamos
ante V. Excia. os planos para introduzir o gravíssimo mal social e
religioso do divórcio na legislação espanhola (...), o que produzirá
estragos incalculáveis em nossa pátria. Em sessão da última conferência
episcopal, alguns prelados votaram a favor da modificação da legislação
atual, abrindo assim as portas para semelhante mal, sem medir, supomos,
as gravíssimas conseqüências de seu irrefletido voto. Opor-nos-emos por
todos os meios lícitos a que hierarcas da Igreja favoreçam a introdução
do divórcio, e rogamos à Santa Sé que intervenha a tempo para que o povo
espanhol não seja vítima de uma manobra (...). Respeitosamente".
Da
mensagem, transcrevemos apenas o estritamente indispensável para que o
leitor se dê conta do fato incrível e monstruoso: Bispos há na Espanha,
que favorecem a introdução do divórcio! E isto sem embargo de a
indissolubilidade do matrimônio ter sido definida pelo Concílio de
Trento no séc. XVI.
Ainda
bem que houve uma falange de sacerdotes que com coragem
caracteristicamente sacerdotal e hispânica, soube protestar
energicamente contra essa trágica defecção.
Sem
embargo, a defecção aí está, a ilustrar com um exemplo concreto o
sinistro processo que Paulo VI tão bem descreveu como a "autodemolição
da Igreja".
* * *
Como
auge da contradição, mais ou menos na mesma época em que se operava a
defecção dos Bispos divorcistas na Espanha, as agências noticiosas
informavam que, na Rússia comunista, a Corte Suprema recomendou aos
tribunais mais rigor na observância dos princípios legais atinentes ao
divórcio. Como se sabe, as formalidades para obtenção de divórcio são
muito sumárias na legislação soviética. Entretanto, nem mesmo essas
disposições vinham sendo observadas. De onde a recomendação da Corte
Suprema.
--
Como explicar tal recomendação? Susto diante do desmoronamento que o
divórcio — amor-livre — vai produzindo na sociedade russa? Talvez.
Neste
caso, o contraste entre a atitude soviética e a dos Bispos espanhóis
divorcistas é flagrante, e bem mostra o mare magnum de
contradições em que vai afundando o mundo contemporâneo.
Entretanto, esta situação não deve ser vista apenas como um fenômeno das
grandes coletividades. Estas últimas se compõem de indivíduos. E sem que
o mal agite grande parte dos indivíduos, ele não pode afetar as
coletividades.
Assim, para que tome conhecimento exato da natureza e do alcance destas
contradições, seria necessário que o leitor não pense apenas em termos
de grupos sociais, ou de nações, como a Espanha ou a Rússia, mas que
também olhe um pouco em torno de si. — Só em torno de si? — Permita-me o
leitor ou a leitora, que lhe proponha olhar também dentro de si. Talvez
encontre, então, ainda mais palpável e próxima, a contradição que passo
a apontar.
Muita
gente há que, tomando conhecimento da atitude pró-divórcio dos prelados
espanhóis, se sentirá tomada da mais alta simpatia. E ficará furiosa,
portanto, com a atitude da Hermandad Sacerdotal, bem como com estes meus
comentários. — "Muito bem para os Bispos divorcistas", exclamarão as
pessoas que se encontram neste caso. E argumentarão: "Estamos num século
de liberdade, no qual todo mundo reclama o direito de fazer o que
quiser. De trocar de marido ou de mulher, portanto. Viva, pois, o
divórcio. Vivam os que abrem caminho para ele".
Sem
entrar no mérito da questão, pergunto: se todo mundo tem o direito de
fazer o que quiser os antidivorcistas têm, ou não têm, o direito de
combater o divórcio? Se não o têm, que liberdade é esta, com mão e sem
contramão? Se o têm, como explicar que um divorcista fique furibundo com
um antidivorcista? Como indignar-se contra alguém que exerce seu
direito?
* * *
Há
outra contradição. Dentre os leitores que se sintam solidários com a
atitude dos Bispos espanhóis pró-divórcio, vários também terão batido
palmas à atitude da Corte Suprema da Rússia, restritiva do divórcio. —
"Muito bem — terão dito eles — o fato mostra que o comunismo vai se
aproximando aos poucos da doutrina católica. Se os católicos souberem
mostrar-se confiantes e transigentes, quem sabe se até não acabará
havendo, dentro do próprio comunismo, facções favoráveis à
indissolubilidade conjugal? Será um grande dia esse, em que assim se
possam encontrar católicos e comunistas".
--
Mas então, pergunto, no que estamos? É bom que os católicos fiquem
divorcistas, e ao mesmo tempo é bom que os soviéticos — ou ao menos
alguns tantos soviéticos — fiquem antidivorcistas? Mas, afinal, para
onde devemos caminhar, para o divórcio ou para a indissolubilidade?
A
contradição, que é óbvia, de nenhum modo choca certo gênero de
mentalidades supermodernas, apaixonadas e irrefletidas. Para elas basta
ser "do contra". Isto é, contra os católicos fiéis à doutrina
tradicional e imutável da Igreja. No caso da Espanha, são contra
indissolubilidade, que entretanto está inteiramente na boa linha
católica. No caso da Rússia, pelo contrário, sorriem para a
indissolubilidade, porque isso lhes dá ocasião de afirmar a
possibilidade de um acordo entre católicos e comunistas. Ora, os
católicos fiéis afirmam a impossibilidade de tal acordo, a menos que os
católicos e os comunistas deixem de ser comunistas.
* * *
Em
conclusão, este gênero de mentalidades é todo formado de contradições.
Da primeira nasce a segunda. E dessa a terceira. Como em certas quedas
de água, o primeiro lance prepara o segundo, e este o terceiro. Ao fim,
as águas caem espumantes no fundo do precipício.
--
Como pode ser que tantas contradições se acumulem em cascata numa mesma
cabeça? Fanatismo? — Talvez. Porém, mais do que isso, também um fenômeno
universal, que se verifica não só em nosso povo, mas em todo o mundo;
não só neste assunto, mas em todos também. É uma autêntica poluição
mental, cujo efeito consiste em que, em nossa época mais que em todas
que a antecederam, o homem se sente à vontade dentro da contradição. O
que o enfurece, o mais das vezes, não é o ilogismo, mas a lógica.
Quero
crer que não esteja neste caso o leitor ou a leitora que tenham tido a
paciência de me ler até o fim.
Mas
se algum, furioso, interrompeu a leitura a meio caminho, está
automaticamente classificado. É dos que odeiam a lógica, e não a
contradição. E que têm na alma, em matéria de contradição, toda uma
cascata...