Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 24 de outubro de 1971

A cascata

Senti-me ufano de ser brasileiro, ao ler na imprensa diária a declaração do senador Wilson Gonçalves (ARENA, Ceará), de que, no Brasil, um plebiscito a favor do divórcio teria como desfecho forçoso a derrota do divorcismo. Explicou o parlamentar que nas classes menos elevadas da sociedade (obviamente as mais numerosas), a maioria é antidivorcista.

Assim, tem razão o senador. A atitude antidivorcista das camadas modestas da população bem prova que elas não se deixam arrastar pelas grandes campanhas internacionais, que promovem sob todas as formas a dissolução da nossa civilização. Fiéis à tradição cristã brasileira, feita de equilíbrio, estabilidade e bom senso, elas continuam a caminhar com passo seguro no glorioso caminho trilhado por nossos maiores.

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Esta reflexão me leva a pensar na tão debatida questão do divórcio. Não para entrar no âmago dela, mas apenas para fazer algumas reflexões sobre o feitio de espírito de certas pessoas muito características dos dias presentes. Entremos pois, na matéria.

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Uma das organizações mais provectas da Espanha atual é a "Hermandad Sacerdotal Española". Tem ela intervindo com rara felicidade e energia nos acontecimentos importantes de seu país. Sabendo evitar com cuidado qualquer subordinação a interesses políticos, sua voz se tem alçado com um nobre timbre de autoridade e desassombro, a propósito de várias controvérsias que dizem respeito à Igreja e à causa da civilização cristã.

No boletim "Dios lo quiere", editado pela entidade em Madri (n.º 12, junho de 1971), leio o seguinte trecho do telegrama enviado por presidentes de diversas associações católicas aos membros do Episcopado espanhol, às Autoridades espanholas e à Santa Sé:

"Gravemente preocupados por informações dignas de crédito, denunciamos ante V. Excia. os planos para introduzir o gravíssimo mal social e religioso do divórcio na legislação espanhola (...), o que produzirá estragos incalculáveis em nossa pátria. Em sessão da última conferência episcopal, alguns prelados votaram a favor da modificação da legislação atual, abrindo assim as portas para semelhante mal, sem medir, supomos, as gravíssimas conseqüências de seu irrefletido voto. Opor-nos-emos por todos os meios lícitos a que hierarcas da Igreja favoreçam a introdução do divórcio, e rogamos à Santa Sé que intervenha a tempo para que o povo espanhol não seja vítima de uma manobra (...). Respeitosamente".

Da mensagem, transcrevemos apenas o estritamente indispensável para que o leitor se dê conta do fato incrível e monstruoso: Bispos há na Espanha, que favorecem a introdução do divórcio! E isto sem embargo de a indissolubilidade do matrimônio ter sido definida pelo Concílio de Trento no séc. XVI.

Ainda bem que houve uma falange de sacerdotes que com coragem caracteristicamente sacerdotal e hispânica, soube protestar energicamente contra essa trágica defecção.

Sem embargo, a defecção aí está, a ilustrar com um exemplo concreto o sinistro processo que Paulo VI tão bem descreveu como a "autodemolição da Igreja".

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Como auge da contradição, mais ou menos na mesma época em que se operava a defecção dos Bispos divorcistas na Espanha, as agências noticiosas informavam que, na Rússia comunista, a Corte Suprema recomendou aos tribunais mais rigor na observância dos princípios legais atinentes ao divórcio. Como se sabe, as formalidades para obtenção de divórcio são muito sumárias na legislação soviética. Entretanto, nem mesmo essas disposições vinham sendo observadas. De onde a recomendação da Corte Suprema.

-- Como explicar tal recomendação? Susto diante do desmoronamento que o divórcio — amor-livre — vai produzindo na sociedade russa? Talvez.

Neste caso, o contraste entre a atitude soviética e a dos Bispos espanhóis divorcistas é flagrante, e bem mostra o mare magnum de contradições em que vai afundando o mundo contemporâneo.

Entretanto, esta situação não deve ser vista apenas como um fenômeno das grandes coletividades. Estas últimas se compõem de indivíduos. E sem que o mal agite grande parte dos indivíduos, ele não pode afetar as coletividades.

Assim, para que tome conhecimento exato da natureza e do alcance destas contradições, seria necessário que o leitor não pense apenas em termos de grupos sociais, ou de nações, como a Espanha ou a Rússia, mas que também olhe um pouco em torno de si. — Só em torno de si? — Permita-me o leitor ou a leitora, que lhe proponha olhar também dentro de si. Talvez encontre, então, ainda mais palpável e próxima, a contradição que passo a apontar.

Muita gente há que, tomando conhecimento da atitude pró-divórcio dos prelados espanhóis, se sentirá tomada da mais alta simpatia. E ficará furiosa, portanto, com a atitude da Hermandad Sacerdotal, bem como com estes meus comentários. — "Muito bem para os Bispos divorcistas", exclamarão as pessoas que se encontram neste caso. E argumentarão: "Estamos num século de liberdade, no qual todo mundo reclama o direito de fazer o que quiser. De trocar de marido ou de mulher, portanto. Viva, pois, o divórcio. Vivam os que abrem caminho para ele".

Sem entrar no mérito da questão, pergunto: se todo mundo tem o direito de fazer o que quiser os antidivorcistas têm, ou não têm, o direito de combater o divórcio? Se não o têm, que liberdade é esta, com mão e sem contramão? Se o têm, como explicar que um divorcista fique furibundo com um antidivorcista? Como indignar-se contra alguém que exerce seu direito?

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Há outra contradição. Dentre os leitores que se sintam solidários com a atitude dos Bispos espanhóis pró-divórcio, vários também terão batido palmas à atitude da Corte Suprema da Rússia, restritiva do divórcio. — "Muito bem — terão dito eles — o fato mostra que o comunismo vai se aproximando aos poucos da doutrina católica. Se os católicos souberem mostrar-se confiantes e transigentes, quem sabe se até não acabará havendo, dentro do próprio comunismo, facções favoráveis à indissolubilidade conjugal? Será um grande dia esse, em que assim se possam encontrar católicos e comunistas".

-- Mas então, pergunto, no que estamos? É bom que os católicos fiquem divorcistas, e ao mesmo tempo é bom que os soviéticos — ou ao menos alguns tantos soviéticos — fiquem antidivorcistas? Mas, afinal, para onde devemos caminhar, para o divórcio ou para a indissolubilidade?

A contradição, que é óbvia, de nenhum modo choca certo gênero de mentalidades supermodernas, apaixonadas e irrefletidas. Para elas basta ser "do contra". Isto é, contra os católicos fiéis à doutrina tradicional e imutável da Igreja. No caso da Espanha, são contra indissolubilidade, que entretanto está inteiramente na boa linha católica. No caso da Rússia, pelo contrário, sorriem para a indissolubilidade, porque isso lhes dá ocasião de afirmar a possibilidade de um acordo entre católicos e comunistas. Ora, os católicos fiéis afirmam a impossibilidade de tal acordo, a menos que os católicos e os comunistas deixem de ser comunistas.

* * *

Em conclusão, este gênero de mentalidades é todo formado de contradições. Da primeira nasce a segunda. E dessa a terceira. Como em certas quedas de água, o primeiro lance prepara o segundo, e este o terceiro. Ao fim, as águas caem espumantes no fundo do precipício.

-- Como pode ser que tantas contradições se acumulem em cascata numa mesma cabeça? Fanatismo? — Talvez. Porém, mais do que isso, também um fenômeno universal, que se verifica não só em nosso povo, mas em todo o mundo; não só neste assunto, mas em todos também. É uma autêntica poluição mental, cujo efeito consiste em que, em nossa época mais que em todas que a antecederam, o homem se sente à vontade dentro da contradição. O que o enfurece, o mais das vezes, não é o ilogismo, mas a lógica.

Quero crer que não esteja neste caso o leitor ou a leitora que tenham tido a paciência de me ler até o fim.

Mas se algum, furioso, interrompeu a leitura a meio caminho, está automaticamente classificado. É dos que odeiam a lógica, e não a contradição. E que têm na alma, em matéria de contradição, toda uma cascata...


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