Folha de S. Paulo, 10 de outubro de 1971
Do anonimato ao estrondo publicitário
Minha vida de lides doutrinárias vem de longe. Iniciei-a
por volta de 1928, em nossa histórica Faculdade de Direito, com os
memoráveis embates da Ação Universitária Católica. Lá vão, pois, 43
anos. Este longo tempo, eu o enchi com o serviço constante dos mesmos
ideais, combatendo sempre, e portanto sempre
combatido.
Ao longo dessas décadas — e disto todos são testemunhas —
jamais saí do terreno ideológico, jamais
ataquei alguém em sua vida privada ou em seus negócios privados.
Também jamais houve o que dizer de mim neste terreno.
O leitor bem pode imaginar, pois, com quanto desagrado me
vejo obrigado, pela contingência dos fatos, a cuidar aqui das falácias,
das contradições e das distorções — todas elas sem o menor conteúdo
doutrinário — de uma carta... de anônimos.
-- Mas como me abster, dado que essa carta foi publicada?
* * *
Veio ela a lume na secção "Dos Leitores" de "O Estado de S.
Paulo" do dia 1º do corrente. Segundo informa o referido matutino, era
ela de autoria de uma "comissão de residentes dos bairros de Santa
Cecília e Higienópolis".
Ora, dos integrantes dessa comissão, não saiu nenhum nome.
Seus autores são, portanto, anônimos. Pelo menos para mim e para o
público.
Compreendo, aliás, que a "comissão de residentes" tenha
desejado para si o anonimato. Pois, como se verá, esta é a posição mais
fácil para a tarefa a que ela se propôs.
* * *
Vamos, antes de tudo, aos fatos, não como os anônimos os
narram, mas como realmente eles se deram. Exponho-os o mais sucintamente
possível.
Por volta das 23:30 horas da noite de 17 para 18 de
setembro p.p., dois jovens se acercaram — proferindo insultos obscenos —
de militantes da TFP, os quais se encontravam na rua Dr. Martinico
Prado, junto ao n.º 377. Neste prédio funciona uma das sedes da referida
entidade.
De início, os militantes tentaram encerrar cortesmente o
episódio. Como os insultos continuassem, impunha-se outra solução. Esta
poderia consistir no desforço físico. Mas os militantes da TFP, sempre
afeitos aos procedimentos pacíficos e ordeiros, preferiram apelar para a
autoridade. Encontrando-se, pois, próximo um oficial do Exército — o
capitão de Cavalaria Carlos Antônio E. H. Poli — pediram-lhe que
dissuadisse os dois agressores.
Depois de observar a cena por algum tempo, o capitão Poli
se acercou dos insultantes, identificando-se e convidando-os a se
retirarem, um deles calou-se, e o outro passou a desacatar
grosseiramente, por sua vez, aquela patente militar. O capitão Poli
deu-lhe consequentemente, voz de prisão. O agressor desferiu um soco no
capitão, que se defendeu. E depois ambos rolaram por terra. E em
seguida, o oficial subjugou o rapaz enfurecido e indisciplinado.
O capitão pediu, então, o comparecimento de uma viatura da
Polícia do Exército. Enquanto esta não chegava, manteve o agressor
deitado ao solo, pisando-lhe, para isto, num dos braços.
Chegada a viatura, os soldados nela recolheram o agressor e
seu amigo, levando-os ao Quartel da PE para a lavratura do auto de
prisão em flagrante delito. Este foi feito com o depoimento de
testemunhas.
Com referência ao companheiro do agressor, foi lavrado um
mero boletim de ocorrência, sendo ele em seguida dispensado. Quanto ao
agressor, o oficial de dia determinou que ficasse detido à disposição da
Justiça Militar. No depoimento então feito, o agressor não mencionou
sentir a menor lesão corporal.
Como é fácil de ver, tudo se passou, da parte dos
agredidos, como da autoridade, com a mais absoluta normalidade legal.
E o
fato não vai além dos limites da rotina de uma grande cidade como São
Paulo.
Esta narração não é inventada. Tudo quanto nela se contém
consta do processo respectivo, na 2ª Auditoria da 2ª Circunscrição
Judiciária Militar. O Promotor Dr. Durval Moreira de Araújo,
reconhecendo como reais os fatos alegados, apresentou contra o agressor
a competente denúncia, a qual foi aceita pelo Juiz Auditor Dr. Nelson da
Silva Machado Guimarães.
* * *
Deste fato, a comissão de residentes deu uma versão
altamente insidiosa. Fingindo ignorar os antecedentes do caso, e pondo
arbitrariamente em dúvida a identidade do capitão Poli, ela começou a
narração descrevendo simplesmente — e aliás com inverdades — a cena
final: o jovem deitado ao solo cercado por integrantes da TFP, e pelo
suposto militar. Teria sido uma covardia, portanto. A essa falsa luz, os
papéis ficavam trocados: o agressor parecia uma vítima, e as vítimas
ficavam parecendo agressores.
E agressores cruéis. Militantes da TFP teriam — segundo a
comissão — pisado o "estômago e a boca" do agressor. Deslavada
falsidade: nada consta a respeito dela, nas declarações prestadas pelo
próprio agressor na PE.
Continua a narração da comissão: "A cena só terminou com a
chegada de uma viatura que recolheu o jovem pisoteado. Até hoje ele não
voltou para casa". A comissão finge não saber que o rapaz foi recolhido
por uma viatura da PE, nem que permaneceu preso à disposição da
autoridade judiciária competente. E, com isto, pretende criar nos
leitores a absurda suspeita de que a viatura pertencia a um particular,
e que o agressor teria sido seqüestrado pela TFP!
Inútil repetir aqui que o agressor ficou à disposição da
autoridade judicial, que o libertou conforme a lei.
O procedimento da comissão dispensa qualificativos. E
revela uma inidoneidade moral que tira qualquer credibilidade a outras
balelas contidas na carta.
* * *
Apesar das inverdades contidas na narração da comissão, os
fatos se passaram de modo tão claro, tão simples e tão legal, que,
devidamente narrados, não se prestam a qualquer exploração.
Sentido-se atacado, o capitão Poli escreveu, aliás, uma
carta a "O Estado de S. Paulo", que este publicou no dia 2 do corrente,
sob o título "Capitão esclarece o incidente da TFP". A mesma carta veio
a lume na secção livre da "Folha de S. Paulo", igualmente no dia 2 de
outubro. Esse documento deixa transparecer toda a inidoneidade moral da
comissão.
* * *
Não posso encerrar estas observações sem mostrar algumas
contradições em que incidiu a "comissão de residentes".
Afirmaram seus integrantes: "Não sabemos quem era esse
rapaz", etc.
Não é fácil harmonizar isto com o fato de que a comissão
sabe onde mora o rapaz, pois afirmou que "foi pisoteado" exatamente "na
porta do prédio onde residia".
Ademais, a comissão também sabe que ali se encontravam os
pais do agressor, pois afirmou que "quase duas horas da madrugada,
desceram os pais do rapaz que já são de idade".
E, sobretudo, se não conhece o rapaz, a comissão entretanto
sabe o que se passa na casa dele, pois afirmou que "até hoje ele não
voltou para casa".
À calúnia, a comissão teve a má idéia de somar a
contradição...
* * *
Não é minha intenção terçar armas aqui, com pessoas
respeitáveis que, aturdidas com o relato da comissão, lhe deram um
crédito que este estava longe de merecer.
Outra questão me preocupa de momento. Ela constitui para
mim um enigma. — Qual o móvel da comissão?
A meu ver, uma hipótese o explicaria. Seria o de abrir, com
o episódio sensacional forjado com as inverdades que o leitor viu, uma
grande campanha de sucessivas difamações contra a TFP.
Se a hipótese é verdadeira, o leitor lhe verá em breve a
confirmação. Algum ataque, por esta ou outra razão, aparecerá em algum
outro órgão de imprensa ou TV, em alguma tribuna sacra ou civil. Depois,
e em cadeia, se lhe acrescentarão outras, e assim por diante, com rumo a
um estrondo publicitário.
Escrevo este artigo na tarde de quinta-feira. Hoje ainda o
mandarei à "Folha de S. Paulo". Não é impossível que, antes mesmo de ser
ele publicado, já algum fato confirme esta hipótese.
Mas se assim é, a campanha começou com o pé esquerdo. E já
no primeiro passo deixou cair a máscara…