Folha de S. Paulo,
1º de
agosto de 1971
Quando o sapo abre a jaula para a hiena...
A
visita do chefe marxista do Estado chileno ao militar que encabeça, na
Argentina, um regime oficialmente anticomunista, me leva a abrir um
parênteses no tema de que vinha tratando. Com efeito, essa visita
oferece aspectos muito interessantes para o leitor brasileiro. E isto me
obriga a declarar sem delongas o que acho a respeito.
Em
poucas palavras, o encontro dos dois presidentes, em Salta, deu toda a
medida do que é, do que pode e do que opera a conjunção da mentalidade
comunista com a mentalidade sapa. A partir daí se explica facilmente a
mal velada satisfação que o encontro Lanusse-Allende produziu, tanto nos
meios sapos como nos meios comunistas de nosso País. Ao mesmo tempo, o
ocorrido em Salta bem mostra de que enorme vantagem para o comunismo é a
saparia. E tudo isto oferece pelo menos a vantagem de abrir os olhos de
numerosos brasileiros para os perigos a que a crescente influência da
minoria sapa pode expor nosso País.
Antes
de entrar na matéria, sinto a necessidade de esclarecer em que sentido
qualifico de "sapo" o tenente-general Lanusse.
Tenho
a este último toda a consideração devida a qualquer Chefe de Estado.
Entretanto, a palavra "sapo" é a única com que se designa, entre nós,
certo tipo de burguês não comunista, mas entusiasta da "apertura a
sinistra". É, pois, à míngua de outro termo, que chamo de "sapo" o
ilustre militar argentino.
Isto
posto, vamos diretamente aos fatos. Eu os colhi, todos, na imprensa
portenha, naturalmente muito mais minuciosa do que a nossa a respeito do
encontro de Salta.
* * *
Quem
correr os olhos pela lista dos assuntos alegados como motivo do encontro
Lanusse-Allende, não pode deixar de se sentir surpreso. Nenhum deles
parece exigir tratativas diretas de presidente a presidente. Poderiam,
todos, ser folgadamente negociados num contato de chanceler a chanceler.
Ou até menos do que isto.
Ora,
em torno desta reunião tão pobre de conteúdo, a encenação das cerimônias
oficiais e o estrépito publicitário foram — paradoxalmente — enormes.
Durante a estadia de Allende em solo argentino, trocaram-se discursos
numerosos e importantes, difundidos para a América e para o mundo por
toda a coorte de jornalistas argentinos e chilenos presentes.
É
impossível evitar a sensação de que o principal objetivo da reunião de
Salta não estava, portanto, nas negociações, mas nos discursos. Estes
últimos, aliás, se mostram tão bem concatenados de presidente a
presidente, que criam a invencível impressão de haverem sido bem
combinados antes. Em suma, Salta não foi senão uma tribuna da qual os
Srs. Allende e Lanusse quiseram anunciar aos respectivos povos, e a toda
a América do Sul, uma mensagem nova.
O
elemento central dessa mensagem é a adoção de um novo estilo de relações
entre os países comunistas e não comunistas. Ou seja, a queda das
chamadas "barreiras ideológicas". A este respeito, tanto Lanusse quanto
Allende fizeram, em tom grandiloqüente e profético, declarações
reiteradas. E insofismáveis.
Eis,
por exemplo, um tópico de Lanusse: "A República Argentina está disposta
a orientar suas relações exteriores de acordo com um amplo critério de
universalidade, que não admite restrições impostas por preconceitos ou
tabus ideológicos. Em nosso tempo, as filosofias políticas defendidas
pelos diferentes países que integram o sistema internacional desempenham
um papel secundário em face do interesse supremo da paz e da segurança
internacionais" (cf. "La Nación" de 24-7-71)
Logo
em seguida, à maneira de ressalva, Lanusse acrescentou, aliás: "Isto não
significa abdicar dos princípios constitutivos do ser nacional de cada
país" (cf. "La Nación" de 24-7-71).
Como
se vê, é a posição sapa característica: os sistemas doutrinários já não
têm importância em nossa época. Os grandes homens de outrora
consideravam que as idéias valem mais do que a vida. Para o homem de
hoje, a vida vale mais do que as idéias.
"É
melhor para nós morrer na guerra, do que ver os males de nosso povo e de
nossos lugares santos" — exclamou Judas Macabeu quando da gloriosa
insurreição de sua família e seus sequazes, contra os pagãos, opressores
do povo eleito.
A
causa da paz é um bem, um altíssimo bem. Não, porém, um bem supremo. E
se o preço dela é a inércia ante a investida comunista, mais vale a pena
lutar.
* * *
"Unilateralidade, exagero!" — exclamaria algum sapo. Pois relações
internacionais nada têm que ver com ideologia.
Para
rebater esta objeção, basta considerar o proveito ideológico que, em
Salta mesmo, Allende soube tirar da atitude de Lanusse.
Ao
mesmo tempo que o chefe de Estado platino situava seu governo num plano
estritamente técnico, deixando aberto um imenso vazio ideológico, este
vazio era desde logo preenchido pela propaganda marcadamente ideológica
de Allende. Pois comunista não perde vaza.
Assim
é que Allende não deixou passar a ocasião de fazer propaganda ideológica
de seu governo pró-marxista, afirmando em discurso a Lanusse: "Através
do governo popular que presido, o Chile constrói uma economia humana e
independente, inspirada nos ideais socialistas. Queremos reestruturar a
sociedade chilena em termos de justiça e liberdade, para alcançarmos um
desenvolvimento nacional autêntico, isto é, a serviço do povo
trabalhador (discurso ao receber o Grão Colar da Ordem do Libertador — a
maior condecoração argentina — a ele conferida por Lanusse, cf. "La
Nación" e "La Prensa" de 24-7-71).
E,
aproveitando uma deixa dada pouco antes por Lanusse, acrescentou:
"Concordo plenamente, pois, com o sr. Presidente: a igualdade jurídica
não basta para assegurar relações estáveis e harmoniosas. Acrescentamos:
enquanto existir uma desigualdade de fato e se manifestarem no mundo
pressões imperialistas" (cf. "La Nación" e "La Prensa" de 24-7-71).
Por
fim, ambiciosamente — e não sem insolência para com o Brasil e os demais
países da América do Sul — passou a traçar um programa socialista para
toda a Íbero-América: "Nós chilenos, queremos contribuir decididamente
para projetar a América Latina no mundo, com personalidade própria,
dignidade e independência, o que requer profundas transformações em sua
estrutura interna, social e política" (cf. "La Nación", 24-7-71).
Assim, mal derrubadas as "barreiras ideológicas", o que surgiu não foi a
paz, nem a primeira coisa que entrou do Chile para a Argentina foi
dinheiro ou mercadoria, mas... propaganda socialista!
* * *
A
coerência estaria a pedir que o tenente-general Lanusse, paladino da
neutralidade ideológica nas relações internacionais, encontrasse algum
modo diplomático para exprimir sua rejeição da manobra do marxista
Allende.
Qual
nada! Depois de, num tópico, lembrar que o regime argentino não é o
chileno, ei-lo que afirma o princípio das portas escancaradas para o
Chile marxista: "Por esta razão, não há relação de estrangeirismo entre
nossos povos. Os que compartilharam de um mesmo passado e estão
dispostos a cooperar reciprocamente na preparação de um futuro de maior
bem-estar e desenvolvimento, não podem sentir-se estranhos entre si"
(cf. "La Nación", 24-7-71).
Em
síntese, realmente as barreiras ideológicas que separavam a Argentina do
mundo marxista foram derrubadas. E, logo depois, a propaganda vermelha
entrou. É natural. Quando o sapo abate as grades da jaula, a fera sai. E
depois, ai do sapo!... ou dos que acreditaram nele.
* * *
Duas
observações finais. Uma sobre a impopularidade do que se fez em Salta.
Allende vinha desdourado por uma expressiva e rotunda derrota eleitoral
em Valparaíso. Lanusse temeu exibir sua política e seu hóspede aos olhos
dos portenhos. E por isto, depois de hesitar sobre se o receberia em
Buenos Aires, em Bariloche, ou em Mendoza, acabou por o receber em
Salta. Por que fugir assim da Capital do país, senão por medo de uma
acolhida má?
Quanto a Bariloche, a coisa é outra. Um jornal informou que a célebre
cidade de esportes de inverno era pouco segura para Allende... por ser
próxima da fronteira chilena: "Quanto a São Carlos de Bariloche, outro
dos lugares que se mencionavam, teria sido descartada devido a algumas
informações que assinalavam a presença de guerrilheiros chilenos na zona
fronteiriça, a curta distância do limite internacional com a Argentina"
("La Prensa" de 24-7-71). E quanto a Mendoza, lá não podia ir Allende
por ser também cidade fronteiriça, repleta de chilenos antimarxistas.
Não podendo ser realizado em Buenos Aires, nem na fronteira, o festival
— eu ia escrevendo o "show" — da derrubada das ideologias teve que se
fazer em Salta.
Como
se vê, Allende não foi à Argentina só para fazer propaganda no Exterior.
Pouco seguro em seu país descontente e agitado, recentemente vencido
numa eleição, quis ele também — e principalmente — desanimar seus
opositores internos, que talvez esperassem apoio argentino. E também
este objetivo, Lanusse auxiliou Allende a obtê-lo plenamente.
Segunda observação: os jornais informaram que o Arcebispo de Salta,
Mons. Carlos Mariano Perez, participou dos atos oficiais da visita (cf.
"La Prensa" de 24-7-71).
Esta
não podia faltar, nos tristes dias em que vivemos!