Folha de S. Paulo,
25 de
julho de 1971
Lições no jardim do vizinho
Estou
estudando atentamente a Carta Apostólica "Octogesima Adveniens",
de Paulo VI.
Ora,
o ponto mais importante do documento é o que se refere à posição dos
católicos face ao socialismo e ao comunismo. E, ao cogitar deste
assunto, eu me tenho perguntado até que ponto é obra do comunismo esta
crise atroz, misteriosa e profunda, por que passa a Igreja, esta
"procela tenebrarum" (São Judas, 13) a que Paulo VI deu o qualificativo
trágico e preciso de "autodemolição". Tal problema, Paulo VI não o
levantou em sua Carta Apostólica, nem — ao que me conste — em qualquer
outro documento. Sem embargo, a questão me preocupa. Pois essa
autodemolição é um crime. E se lhe quero conhecer o autor, devo
perguntar-me quem mais lucra com ele. Ora, dado que o grande
beneficiário do crime é o comunismo, não posso deixar de me perguntar se
não é este — por detrás de agentes secundários — o responsável supremo
da "autodemolição".
Desejo hoje oferecer ao leitor alguns dados para que forme um juízo a
este respeito.
Esses
dados, fornece-os o estudo da política seguida pelo comunismo em relação
à igreja russa (correntemente chamada "ortodoxa"), a qual pertencia a
grande maioria dos russos em 1917, quando os comunistas subiram ao
poder.
O
grande público — pelo menos no Ocidente — tem dessa política uma idéia
simplista e falsa: neste meio século de dominação, o comunismo de quando
em vez desfecha uma perseguição brutal contra a igreja russa. A cada
perseguição, míngua o número de hierarcas e fiéis. Nos intervalos entre
uma e outra perseguição, ela procura cicatrizar suas chagas. Mas o tempo
não lhe basta para tal, pois logo sobrevém outra chacina. Assim, de
agressão em agressão, da igreja dita "ortodoxa" só restam tristes
molambos em vias de desaparecimento total.
Na
realidade, o quadro é bem outro. É o que procurarei expor em linhas
muito gerais.
* * *
É bem
verdade que o comunismo começou por um ataque brutal a todas as
religiões na Rússia, entre as quais não só à Religião Católica — tão
florescente na Ucrânia e em outras regiões daquele país — como a
religião "ortodoxa". Depois, e até o ano de 1939, outras se lhe
seguiram.
Mas,
a não cogitarmos senão desta última, as perseguições não constaram
apenas de atos de violência. Elas comportaram o emprego em larga escala,
dos métodos mais refinados de lavagem cerebral coletiva.
Este
foi o primeiro período da luta anti-religiosa na Rússia soviética. Ela
redundou num insofismável insucesso. Perseguidos, divididos,
desorientados por certos hierarcas vilmente traidores, os "ortodoxos"
continuaram firmemente fiéis a suas convicções religiosas.
A
perseguição tomou então outro aspecto. O governo comunista procurou
destruir a igreja russa, não mais de fora para dentro mas de dentro para
fora. Para isto, deu-lhe relativa liberdade e permitiu-lhe
reorganizar-se. Mas, em compensação, impôs diversas condições. Destas, a
mais característica consistiu em que os hierarcas "ortodoxos" fossem
homens de confiança dos ateus do Kremlin. Isto equivale, para a igreja
russa, à aceitação de um pacto: o comunismo renuncia de momento a
dizimar as ovelhas, sob a condição de que todos os pastores sejam lobos
escolhidos por lobos.
Para
desorientar, desanimar e abater até o último ponto, no dia de hoje, os
fiéis, e assim putrefazer a igreja "ortodoxa", nada melhor. Para lhes
preparar o extermínio no dia de amanhã, nada de melhor também.
Em
geral, a putrefação é um processo gradual. Assim, o golpe supremo contra
a igreja "ortodoxa" ficava algum tanto adiado. — Como tirar proveito
dela para o comunismo, enquanto durar esta triste sobrevida? — Pergunta
forçosa para todo verdadeiro comunista, para quem tudo quanto existe
deve ser posto ao serviço da "causa do proletariado".
As
vantagens que o Kremlin soube tirar deste corpo em deterioração foram
simplesmente espantosas. A igreja "ortodoxa" sujeita ao Kremlin:
a)
serviu de apoio precioso para Stalin na resistência contra a invasão
alemã;
b)
incumbiu-se, cessada a guerra, de refazer entre seus milhões de fiéis, a
popularidade do regime comunista, que jamais fora grande, e que o curso
do tempo vinha minando perigosamente;
c)
induzir as igrejas "ortodoxas" do países conquistados depois da guerra,
a apoiar os invasores soviéticos, consolidando assim o imenso império
colonial russo na Europa;
d)
presta-se a fazer uma ativa propaganda comunista junto às igrejas
"ortodoxas" da Grécia, Turquia, Ásia Menor e África, bem como junto às
igrejas "ortodoxas" russas formadas por exilados dispersos em toda a
terra;
e)
através do movimento ecumênico, aproxima-se da Igreja Católica e das
seitas protestantes, despertando nelas a esperança de um "modus vivendi"
com o comunismo, em caso de vitória deste. E, por esta forma, amortecer
a ofensiva anticomunista do Ocidente.
Este
período, que poderíamos chamar de apodrecimento e exploração da religião
"ortodoxa", veio de 1939 até nossos dias.
Tais
são os grandes traços gerais da triste história da igreja "ortodoxa
cremliniana" sob o regime comunista. Ao deles tomar conhecimento, já o
leitor católico terá entrevisto quantas lições lhe traz o ocorrido no
jardim do vizinho "ortodoxo".
—
Como
se passaram concretamente os fatos em cada fase? — Vê-lo-emos em outro
artigo.
* * *
Algum
leitor estranhará que eu escreva sempre "ortodoxo" entre aspas. Não o
faço nem de longe com o intuito de espicaçar ou agredir. É que, como
católico, não posso, em rigor de lógica, reconhecer como ortodoxa (já
que ortodoxo quer dizer, em grego, opinião reta) senão a Santa Igreja
Católica Apostólica Romana. É bem verdade que o uso tem levado
incontáveis católicos a dispensar as aspas como inúteis, por se entender
como óbvio que um católico não pode aceitar como verdadeiramente
ortodoxa uma igreja separada de Roma. Mas nestes tempos de ecumenismo
delirante, parece-me perfeitamente legítimo que tanto os católicos leais
à fé como os "ortodoxos" coerentes queiram evitar qualquer confusão. E
que para isto usem medidas excepcionais.
—
E "cremliniana"?
Por que uso este neologismo? — Muito simplesmente porque a realidade dos
fatos manda que se diga e com quanta alegria o digo — que uma boa fração
dos "ortodoxos" russos e não russos recusa qualquer comunhão com os
lacaios mitrados que o Kremlin pôs à testa do arremedo de Igreja e de
Hierarquia, que em Moscou funciona sob os auspícios do Estado ateu.
Esses
"ortodoxos" anticremlinianos — hierarcas e leigos sofrendo perseguições
e pressões de toda ordem — se conservam irredutíveis em considerar os "cremlinianos"
como sinistros farsantes. A nobre firmeza desses "ortodoxos" merece um
aplauso caloroso, que todo católico verdadeiro lhes dá com gosto.