Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 25 de julho de 1971

Lições no jardim do vizinho

Estou estudando atentamente a Carta Apostólica "Octogesima Adveniens", de Paulo VI.

Ora, o ponto mais importante do documento é o que se refere à posição dos católicos face ao socialismo e ao comunismo. E, ao cogitar deste assunto, eu me tenho perguntado até que ponto é obra do comunismo esta crise atroz, misteriosa e profunda, por que passa a Igreja, esta "procela tenebrarum" (São Judas, 13) a que Paulo VI deu o qualificativo trágico e preciso de "autodemolição". Tal problema, Paulo VI não o levantou em sua Carta Apostólica, nem — ao que me conste — em qualquer outro documento. Sem embargo, a questão me preocupa. Pois essa autodemolição é um crime. E se lhe quero conhecer o autor, devo perguntar-me quem mais lucra com ele. Ora, dado que o grande beneficiário do crime é o comunismo, não posso deixar de me perguntar se não é este — por detrás de agentes secundários — o responsável supremo da "autodemolição".

Desejo hoje oferecer ao leitor alguns dados para que forme um juízo a este respeito.

Esses dados, fornece-os o estudo da política seguida pelo comunismo em relação à igreja russa (correntemente chamada "ortodoxa"), a qual pertencia a grande maioria dos russos em 1917, quando os comunistas subiram ao poder.

O grande público — pelo menos no Ocidente — tem dessa política uma idéia simplista e falsa: neste meio século de dominação, o comunismo de quando em vez desfecha uma perseguição brutal contra a igreja russa. A cada perseguição, míngua o número de hierarcas e fiéis. Nos intervalos entre uma e outra perseguição, ela procura cicatrizar suas chagas. Mas o tempo não lhe basta para tal, pois logo sobrevém outra chacina. Assim, de agressão em agressão, da igreja dita "ortodoxa" só restam tristes molambos em vias de desaparecimento total.

Na realidade, o quadro é bem outro. É o que procurarei expor em linhas muito gerais.

*   *   *

É bem verdade que o comunismo começou por um ataque brutal a todas as religiões na Rússia, entre as quais não só à Religião Católica — tão florescente na Ucrânia e em outras regiões daquele país — como a religião "ortodoxa". Depois, e até o ano de 1939, outras se lhe seguiram.

Mas, a não cogitarmos senão desta última, as perseguições não constaram apenas de atos de violência. Elas comportaram o emprego em larga escala, dos métodos mais refinados de lavagem cerebral coletiva.

Este foi o primeiro período da luta anti-religiosa na Rússia soviética. Ela redundou num insofismável insucesso. Perseguidos, divididos, desorientados por certos hierarcas vilmente traidores, os "ortodoxos" continuaram firmemente fiéis a suas convicções religiosas.

A perseguição tomou então outro aspecto. O governo comunista procurou destruir a igreja russa, não mais de fora para dentro mas de dentro para fora. Para isto, deu-lhe relativa liberdade e permitiu-lhe reorganizar-se. Mas, em compensação, impôs diversas condições. Destas, a mais característica consistiu em que os hierarcas "ortodoxos" fossem homens de confiança dos ateus do Kremlin. Isto equivale, para a igreja russa, à aceitação de um pacto: o comunismo renuncia de momento a dizimar as ovelhas, sob a condição de que todos os pastores sejam lobos escolhidos por lobos.

Para desorientar, desanimar e abater até o último ponto, no dia de hoje, os fiéis, e assim putrefazer a igreja "ortodoxa", nada melhor. Para lhes preparar o extermínio no dia de amanhã, nada de melhor também.

Em geral, a putrefação é um processo gradual. Assim, o golpe supremo contra a igreja "ortodoxa" ficava algum tanto adiado. — Como tirar proveito dela para o comunismo, enquanto durar esta triste sobrevida? — Pergunta forçosa para todo verdadeiro comunista, para quem tudo quanto existe deve ser posto ao serviço da "causa do proletariado".

As vantagens que o Kremlin soube tirar deste corpo em deterioração foram simplesmente espantosas. A igreja "ortodoxa" sujeita ao Kremlin:

a) serviu de apoio precioso para Stalin na resistência contra a invasão alemã;

b) incumbiu-se, cessada a guerra, de refazer entre seus milhões de fiéis, a popularidade do regime comunista, que jamais fora grande, e que o curso do tempo vinha minando perigosamente;

c) induzir as igrejas "ortodoxas" do países conquistados depois da guerra, a apoiar os invasores soviéticos, consolidando assim o imenso império colonial russo na Europa;

d) presta-se a fazer uma ativa propaganda comunista junto às igrejas "ortodoxas" da Grécia, Turquia, Ásia Menor e África, bem como junto às igrejas "ortodoxas" russas formadas por exilados dispersos em toda a terra;

e) através do movimento ecumênico, aproxima-se da Igreja Católica e das seitas protestantes, despertando nelas a esperança de um "modus vivendi" com o comunismo, em caso de vitória deste. E, por esta forma, amortecer a ofensiva anticomunista do Ocidente.

Este período, que poderíamos chamar de apodrecimento e exploração da religião "ortodoxa", veio de 1939 até nossos dias.

Tais são os grandes traços gerais da triste história da igreja "ortodoxa cremliniana" sob o regime comunista. Ao deles tomar conhecimento, já o leitor católico terá entrevisto quantas lições lhe traz o ocorrido no jardim do vizinho "ortodoxo".

Como se passaram concretamente os fatos em cada fase? — Vê-lo-emos em outro artigo.

*   *   *

Algum leitor estranhará que eu escreva sempre "ortodoxo" entre aspas. Não o faço nem de longe com o intuito de espicaçar ou agredir. É que, como católico, não posso, em rigor de lógica, reconhecer como ortodoxa (já que ortodoxo quer dizer, em grego, opinião reta) senão a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. É bem verdade que o uso tem levado incontáveis católicos a dispensar as aspas como inúteis, por se entender como óbvio que um católico não pode aceitar como verdadeiramente ortodoxa uma igreja separada de Roma. Mas nestes tempos de ecumenismo delirante, parece-me perfeitamente legítimo que tanto os católicos leais à fé como os "ortodoxos" coerentes queiram evitar qualquer confusão. E que para isto usem medidas excepcionais.

E "cremliniana"? Por que uso este neologismo? — Muito simplesmente porque a realidade dos fatos manda que se diga e com quanta alegria o digo — que uma boa fração dos "ortodoxos" russos e não russos recusa qualquer comunhão com os lacaios mitrados que o Kremlin pôs à testa do arremedo de Igreja e de Hierarquia, que em Moscou funciona sob os auspícios do Estado ateu.

Esses "ortodoxos" anticremlinianos — hierarcas e leigos sofrendo perseguições e pressões de toda ordem — se conservam irredutíveis em considerar os "cremlinianos" como sinistros farsantes. A nobre firmeza desses "ortodoxos" merece um aplauso caloroso, que todo católico verdadeiro lhes dá com gosto.


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