Folha de S. Paulo,
18 de
julho de 1971
Posto
de gasolina, bacharel e batatas
Meu
automóvel parou em um posto de gasolina, para se abastecer. Continuei
sentado no carro, enquanto o encarregado do posto enchia o tanque. E
maquinalmente meus olhos se puseram sobre dois cidadãos bem trajados,
que estavam de pé junto a outro carro, também em vias de ser abastecido.
Um deles era baixote, gordo, de olhar vivo, e falante. O outro, alto,
esguio, de olhar preocupado e distante, parecia de poucas falas.
O
baixote me fitou e disse algo ao companheiro. Trocaram umas rápidas
palavras, que não consegui ouvir. Logo em seguida, o baixote acendeu um
cigarro, e caminhou em minha direção, seguido um pouco de longe pelo
companheiro.
--
"Professor", disse-me ele afavelmente, "o sr. me permite uma palavra?" —
Eu estava com pressa, mas consegui pôr amabilidade no modo de entoar a
resposta ritual: — "Pois não, com muito gosto".
Meu
interlocutor chupou então o cigarro e tirou uma baforada, que subiu
densa, numa mistura opaca de fumaça e neblina. Enquanto isto, via-se que
ele acabava de dar forma a seu pensamento.
--
"Sou advogado", disse-me ele. "Dirijo o Departamento Legal da X — S/A,
cujo diretor-superintendente aqui está.”
O
diretor e eu trocamos cumprimentos. E o baixote continuou.
--
"Li seus dois últimos artigos na "Folha de S. Paulo", sobre o livro
recente do pe. Comblin. Bem entendido, não estou de acordo com o Padre.
Quer isto dizer que estou de acordo com o sr.? Desculpe-me, mas também
não. Pelo menos em parte, estou em desacordo. Pois o sr. parece desejar
a aplicação de penas eclesiásticas ao Pe. Comblin, como a destituição da
cátedra que ocupa. Talvez até não lhe desagradasse que o Governo banisse
do Território Nacional o sacerdote belga... ao menos por um par de anos.
"Ora,
para mim, que tenho formação jurídica, isto parece inadmissível. Pode
alguém ser punido por atos subversivos. E entre estes incluo o
incitamento à subversão. Mas a simples pregação de idéias comunistas
deve ser livre. Pois isto é inerente à liberdade de cátedra e de
pensamento. Espanta-me que o sr., bacharel como eu, não pense assim."
Esperei pacientemente que o colega verboso desenrolasse a bobina de seu
pensamento. E lhe retruquei:
--
"Meu caro, o seu arrazoado costuma ser alegado contra a aplicação de
penas pelo poder temporal. A Igreja é uma sociedade espiritual, que se
esteia em uma ortodoxia, como um Estado se fixa sobre um território.
Transgredir os limites da ortodoxia é cometer contra a Igreja delito
análogo ao que praticaria contra o Estado quem lhe violasse as
fronteiras. É tão legítimo que a Igreja se defenda contra o heterodoxo
quanto o Estado contra o invasor. E sendo a Igreja — repito — uma
sociedade espiritual, normal é que ela utilize penas espirituais nessa
legítima defesa. Uma delas é a destituição do transgressor da ortodoxia
dos cargos que a confiança da Igreja lhe entregara".
O
industrial fazia-se "sapamente" de desinteressado. Mas eu percebia que
ele não perdia uma só palavra do que dizíamos.
O
bacharel, pelo contrário, muito empenhado na questão, retrucou logo: —
"Mas se as idéias heterodoxas não incitam à subversão..."
Atalhei: — "O que é subversão na Igreja? Antes de tudo, e por
excelência, a disseminação do erro..."
O meu
colega não quis dar-se por vencido e replicou desviando discretamente o
assunto: — "Que provada pelo Judiciário a culpabilidade de Padres
subversivos, a Igreja tome medidas canônicas contra eles, vá lá. Mas por
meras idéias... é puxado!"
Como
se vê, ele procurava passar do caso Comblin para outros casos. Eu queria
obrigá-lo a ficar no tema inicial. E para isto tinha a resposta na ponta
da língua: — "Por mandato divino, a Igreja tem o direito e o dever de
punir o erro. Esta atribuição, ela não a pode delegar a um juiz
investido pelo Estado. É intransferível. No caso do Pe. Comblin,
trata-se de erros de doutrina. À Igreja cabe qualificá-los como tais, e
puni-los. No caso dos Padres acusados de cumplicidade com o terrorismo,
a Hierarquia resolveu esperar o pronunciamento dos tribunais do Estado,
alegando que ela não queria agir sem provas".
O
advogado baixote me interrompeu: — "É claro. A Hierarquia não podia ter
feito outra coisa".
--
"Não tanto, ponderei. Sendo a Igreja e o Estado sociedades soberanas
cada qual na esfera própria, poderia a primeira ter submetido os
sacerdotes suspeitos a um processo eclesiástico, para fins
eclesiásticos. Digamos, entretanto, que não o tenha feito por não dispor
dos meios de averiguação de que o Estado dispõe. Vá lá. Não obstante, no
caso do Pe. Comblin não se trata, para a Igreja, de investigar
cumplicidade com o terror, mas tão só a ortodoxia das idéias que
difunde. E estas se acham no livro... É só abrir e ler. São as mesmas do
escandaloso estudo que ele publicou em 1968. Então, por que não agir?"
Via-se que o industrial estava agastado com minha argumentação. Mas
sempre aparentando alheamento e desinteresse. Num ponto, entretanto, ele
e eu estávamos de acordo: tínhamos pressa de ir a nossos afazeres.
O meu
colega bacharel, este não tinha pressa. E por isto insistiu: — "É, mas
idéias são idéias. Doutrinas..." e ia encetar nova divagação.
Procurei atalhar: — "Mas o que o colega chama "idéias"? A tese de que o
Evangelho fundamente a revolução social é — no seu sentido — uma idéia.
Um professor espalha à vontade, entre dez, vinte, cem jovens, e nada lhe
sucede. De seu lado, dez ou vinte desses jovens tomam a idéia a sério, e
entram na subversão. Pergunto: se a subversão estoura, qual é o
principal responsável? Não é o professor? Pode-se ignorar esta
realidade?"
De
parte a parte, os tanques dos automóveis estavam cheios, as contas pagas
e os chauffeurs a postos, esperando ordem para partir.
A
esta altura, foi o industrial que atalhou: — "Não entro nessas
discussões doutrinárias. Problemas não se resolvem com discussões
teóricas entre advogados, mas com desenvolvimento. Não debatendo
princípios, mas enchendo barrigas. Se há um descontente, encha-se-lhe o
estômago, e está tudo resolvido". Apresentou-me despedidas e, com
discreto autoritarismo, foi levando o advogado pelo braço, um pouco como
se leva para a aula um menino travesso.
Não
respondi ao industrial. — Se a todas as idéias se deve responder com
comida, para que dar-lhe argumentos? Não seria melhor dar-lhe
sanduíches? — E eu não tinha nenhum sanduíche à mão...
Enquanto eles se afastavam e meu carro dava a partida, eu conservava o
olhar fito no industrial. E me vinha ao espírito uma frase de Claudel
sobre certo tipo de homens, que gostariam que as estrelas caíssem do céu
e se transformassem em batatas...