Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 18 de julho de 1971

Posto de gasolina, bacharel e batatas

Meu automóvel parou em um posto de gasolina, para se abastecer. Continuei sentado no carro, enquanto o encarregado do posto enchia o tanque. E maquinalmente meus olhos se puseram sobre dois cidadãos bem trajados, que estavam de pé junto a outro carro, também em vias de ser abastecido. Um deles era baixote, gordo, de olhar vivo, e falante. O outro, alto, esguio, de olhar preocupado e distante, parecia de poucas falas.

O baixote me fitou e disse algo ao companheiro. Trocaram umas rápidas palavras, que não consegui ouvir. Logo em seguida, o baixote acendeu um cigarro, e caminhou em minha direção, seguido um pouco de longe pelo companheiro.

-- "Professor", disse-me ele afavelmente, "o sr. me permite uma palavra?" — Eu estava com pressa, mas consegui pôr amabilidade no modo de entoar a resposta ritual: — "Pois não, com muito gosto".

Meu interlocutor chupou então o cigarro e tirou uma baforada, que subiu densa, numa mistura opaca de fumaça e neblina. Enquanto isto, via-se que ele acabava de dar forma a seu pensamento.

-- "Sou advogado", disse-me ele. "Dirijo o Departamento Legal da X — S/A, cujo diretor-superintendente aqui está.”

O diretor e eu trocamos cumprimentos. E o baixote continuou.

-- "Li seus dois últimos artigos na "Folha de S. Paulo", sobre o livro recente do pe. Comblin. Bem entendido, não estou de acordo com o Padre. Quer isto dizer que estou de acordo com o sr.? Desculpe-me, mas também não. Pelo menos em parte, estou em desacordo. Pois o sr. parece desejar a aplicação de penas eclesiásticas ao Pe. Comblin, como a destituição da cátedra que ocupa. Talvez até não lhe desagradasse que o Governo banisse do Território Nacional o sacerdote belga... ao menos por um par de anos.

"Ora, para mim, que tenho formação jurídica, isto parece inadmissível. Pode alguém ser punido por atos subversivos. E entre estes incluo o incitamento à subversão. Mas a simples pregação de idéias comunistas deve ser livre. Pois isto é inerente à liberdade de cátedra e de pensamento. Espanta-me que o sr., bacharel como eu, não pense assim."

Esperei pacientemente que o colega verboso desenrolasse a bobina de seu pensamento. E lhe retruquei:

-- "Meu caro, o seu arrazoado costuma ser alegado contra a aplicação de penas pelo poder temporal. A Igreja é uma sociedade espiritual, que se esteia em uma ortodoxia, como um Estado se fixa sobre um território. Transgredir os limites da ortodoxia é cometer contra a Igreja delito análogo ao que praticaria contra o Estado quem lhe violasse as fronteiras. É tão legítimo que a Igreja se defenda contra o heterodoxo quanto o Estado contra o invasor. E sendo a Igreja — repito — uma sociedade espiritual, normal é que ela utilize penas espirituais nessa legítima defesa. Uma delas é a destituição do transgressor da ortodoxia dos cargos que a confiança da Igreja lhe entregara".

O industrial fazia-se "sapamente" de desinteressado. Mas eu percebia que ele não perdia uma só palavra do que dizíamos.

O bacharel, pelo contrário, muito empenhado na questão, retrucou logo: — "Mas se as idéias heterodoxas não incitam à subversão..."

Atalhei: — "O que é subversão na Igreja? Antes de tudo, e por excelência, a disseminação do erro..."

O meu colega não quis dar-se por vencido e replicou desviando discretamente o assunto: — "Que provada pelo Judiciário a culpabilidade de Padres subversivos, a Igreja tome medidas canônicas contra eles, vá lá. Mas por meras idéias... é puxado!"

Como se vê, ele procurava passar do caso Comblin para outros casos. Eu queria obrigá-lo a ficar no tema inicial. E para isto tinha a resposta na ponta da língua: — "Por mandato divino, a Igreja tem o direito e o dever de punir o erro. Esta atribuição, ela não a pode delegar a um juiz investido pelo Estado. É intransferível. No caso do Pe. Comblin, trata-se de erros de doutrina. À Igreja cabe qualificá-los como tais, e puni-los. No caso dos Padres acusados de cumplicidade com o terrorismo, a Hierarquia resolveu esperar o pronunciamento dos tribunais do Estado, alegando que ela não queria agir sem provas".

O advogado baixote me interrompeu: — "É claro. A Hierarquia não podia ter feito outra coisa".

-- "Não tanto, ponderei. Sendo a Igreja e o Estado sociedades soberanas cada qual na esfera própria, poderia a primeira ter submetido os sacerdotes suspeitos a um processo eclesiástico, para fins eclesiásticos. Digamos, entretanto, que não o tenha feito por não dispor dos meios de averiguação de que o Estado dispõe. Vá lá. Não obstante, no caso do Pe. Comblin não se trata, para a Igreja, de investigar cumplicidade com o terror, mas tão só a ortodoxia das idéias que difunde. E estas se acham no livro... É só abrir e ler. São as mesmas do escandaloso estudo que ele publicou em 1968. Então, por que não agir?"

Via-se que o industrial estava agastado com minha argumentação. Mas sempre aparentando alheamento e desinteresse. Num ponto, entretanto, ele e eu estávamos de acordo: tínhamos pressa de ir a nossos afazeres.

O meu colega bacharel, este não tinha pressa. E por isto insistiu: — "É, mas idéias são idéias. Doutrinas..." e ia encetar nova divagação.

Procurei atalhar: — "Mas o que o colega chama "idéias"? A tese de que o Evangelho fundamente a revolução social é — no seu sentido — uma idéia. Um professor espalha à vontade, entre dez, vinte, cem jovens, e nada lhe sucede. De seu lado, dez ou vinte desses jovens tomam a idéia a sério, e entram na subversão. Pergunto: se a subversão estoura, qual é o principal responsável? Não é o professor? Pode-se ignorar esta realidade?"

De parte a parte, os tanques dos automóveis estavam cheios, as contas pagas e os chauffeurs a postos, esperando ordem para partir.

A esta altura, foi o industrial que atalhou: — "Não entro nessas discussões doutrinárias. Problemas não se resolvem com discussões teóricas entre advogados, mas com desenvolvimento. Não debatendo princípios, mas enchendo barrigas. Se há um descontente, encha-se-lhe o estômago, e está tudo resolvido". Apresentou-me despedidas e, com discreto autoritarismo, foi levando o advogado pelo braço, um pouco como se leva para a aula um menino travesso.

Não respondi ao industrial. — Se a todas as idéias se deve responder com comida, para que dar-lhe argumentos? Não seria melhor dar-lhe sanduíches? — E eu não tinha nenhum sanduíche à mão...

Enquanto eles se afastavam e meu carro dava a partida, eu conservava o olhar fito no industrial. E me vinha ao espírito uma frase de Claudel sobre certo tipo de homens, que gostariam que as estrelas caíssem do céu e se transformassem em batatas...


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