Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

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27 de junho de 1971 

Com Gogó, de volta no avião

O avião atravessava as nuvens feias e obscuras que nesse úmido crepúsculo de inverno toldavam o céu da Guanabara. Algum tanto cansado pelos afazeres do dia, eu me preparava para cochilar na tepidez da aeronave, à espera da chegada em Congonhas. A meu lado, uma poltrona simpaticamente desocupada me fazia a mais deliciosa das companhias.

Inesperadamente me chega aos ouvidos, do fundo do avião, a voz sonora de Gogó, que dizia a alguém: "Olhe lá o Plinio, preciso acertar um assunto com ele. Com licença". E outra voz menos sonora, lhe respondia solicitamente, e sem a menor inflexão de pesar: "Pois não. Inteiramente à vontade". Tive um movimento de inveja do interlocutor que o Gogó assim abandonava. Mas não houve tempo para que esse sentimento se definisse inteiramente em mim, pois o Gogó já vinha chegando. E, ao mesmo tempo que se refestelava na poltrona, ele cobrava a promessa que eu lhe fizera de manhã. "Vamos continuar nossa briga", propôs ele com um sorrizinho a iluminar palidamente a sua cara de moeda.

Promessa é dívida. Pela manhã, ao chegarmos ao Rio, eu acenara ao Gogó — no calor da discussão — com um novo embate na viagem de volta. Agora, só me restava aceitar o segundo torneio. Voltei-me para o Gogó com uma expressão de fisionomia que creio ter sido perfeitamente afável. E Gogó começou.

Gogó — Então, vamos voltar ao caso da "TPF"?

Eu — "TPF", Gogó?

Gogó — Mas, afinal, por que você não gosta que se diga "TPF"?

Eu — Ora esta! Você gostaria de ser chamado de Ogog, em vez de Gogó?

Gogó — Desde que me chamam de Gogó, tanto faria que me chamassem de Ogog. Detesto este apelido, que por causa de uns engraçadinhos do colégio venho arrastando ao longo da vida, como um bicho arrasta um rabo feio.

Senti pena do Gogó. Eu nada tinha a me recriminar a tal respeito, aliás. Pois nunca fiz parte de nenhuma turma de engraçadinhos. E nunca dei apelido a ninguém. Em todo caso, continuei:

Eu — Bem, Gogó, o caso com a TFP é outro. Carregamos o nome com a ufania de um guerreiro que leva seu estandarte. E pronunciamos sua sigla com o entusiasmo de arautos que lançam um brado de vitória. Por isto, não aceitamos que se altere a ordem das letras que a compõem. Dizer "TPF" é manobrinha de sapo: você é sapo, Gogó?

Gogó — A mana Maria diz sempre que é sapa, e já o era desde o tempo de freira. Seu marido, diz ela, é sapo também. E ela chama seus filhos de sapinhos. Pobre Telésforo, tão indolente! Não sei se ele é sapo ou qualquer outra coisa. Mas a Maria diz que é. E ele repete que é. Quanto a mim, sigo o exemplo da Maria e sou sapo mesmo — arrematou Gogó, com seu sorrisinho.

Eu — É, para você é vantagem ser sapo. Sapo não tem rabo comprido, não é?

Gogó — Se eu sou sapo, você é um fantasma medieval. A Idade Média está sempre presente em sua cabeça. Ainda agora, viajando num moderníssimo avião, você fala de arautos, guerreiros, estandartes, com a mesma naturalidade com que o faria um guerreiro cristão a cavalgar um corcel na estrada poeirenta da Terra Santa.

Eu — E o que você queria que fizesse? Que gaguejasse ao falar destas coisas, só porque estou em um avião?

Gogó — Queria que você não falasse. Vê-se a todo propósito que você entende por Tradição uma certa nostalgia da Idade Média. Que toda a TFP quer, a todo custo, a conservação de muita coisa que dela nos ficou. E que até gostaria de ressuscitar outras tantas, que Lutero, a Revolução Francesa e o século XX enterraram para sempre.

Esta frase, Gogó a terminou indignado.

Eu — Quanto à conservação, Gogó, não há dúvida. Quase tudo quanto nossa época conserva como legado da Idade Média deve ser conservado. Já não falo apenas dos nossos óculos, dos nossos botões, dos nossos relógios, que citei em nossa conversa anterior. Refiro-me também aos hospitais, que como talvez você saiba tomaram forma e consistência na Idade Média. Desta nos vieram as Universidades. A ela devemos as catedrais góticas, os castelos góticos, que turistas do mundo inteiro vão à Europa para visitar. E eu poderia citar muitas outras coisas. Você quer arrasar tudo isto?

Gogó — Qual nada! A Idade Média foi uma era de grosso analfabetismo, que só cessou quando Gutenberg inventou a imprensa, e então a palavra escrita, correndo pela Europa como um corisco, espancou a ignorância medieval.

Eu — Espanta-me que você não perceba a contradição que há nesta lorota tão repetida. Como pode a palavra escrita correr como um corisco num continente de analfabetos? Seria como afirmar o êxito do rádio num país de surdos.

Gogó — Vocês da TFP querem voltar para trás. No mundo de hoje tudo caminha para a frente!

Eu — O que você chama "para a frente"? A decadência da palavra escrita, substituída cada vez mais por quadrinhos e figuras, não são uma volta ao analfabetismo? Neste caso, você, que imagina analfabeta a Idade Média, deve achar que é para a Idade Média que o mundo vai voltando. A meu ver, vai voltando mais para trás, para os bárbaros das grandes invasões.

Gogó — Acho medievais esses seus moços de paletó e gravata, de estandartes na mão. A mocidade de hoje gosta de trajes arejados, maneiras desinibidas, cabelo revolto...

Eu — Os bárbaros que invadiram o Império Romano ainda realizariam mais plenamente seu ideal. Sua desinibição era total. Seus cabelos desgrenhados. De paletó e gravata, nem sombra. Eram, a este respeito, algo à maneira de hippies. Só que ainda muito mais "para a frente" do que estes.

Gogó — Por que vocês não acabam com esses paletós e essas gravatas?

Eu — Você pensa que datam da Idade Média? Oh! Gogó!

Gogó — Mas, enfim, por que não acabam com isto?

Eu — E por que acabar? Se se usa paletó e gravata para dar seriedade ao trabalho, por que não usar uma e outra coisa para dar seriedade à vida inteira?

Gogó — Seu argumento me dá asfixia. Seriedade na vida inteira! Homem, é preciso saber rir, brincar, cantar, ser alegre.

Eu — Sim, nas horas devidas. E na maior parte do dia há que rezar, pensar, trabalhar, cumprir o dever.

Gogó — É bem isto que deve desaparecer! A seriedade mística ou metafísica do homem dos tempos idos. Essa foi a base do mundo sacral, disciplinado e hierárquico da Idade Média. Eu quero a derrubada do que resta desse mundo e a ascensão de um mundo oposto. E os que pensam como eu são legião.

Eu — Gogó, detesto seu programa, mas gosto de sua franqueza. Você quer derrubar um mundo para extirpar as concepções morais em que ele se baseia. E como a TFP quer conservar e aplicar em toda a sua extensão essas concepções morais, você também a quer derrubar. Em última análise, a TFP quer uma civilização cristã. E você quer um mundo hippie, nudista, anarquista e carnavalesco.

Gogó — Você elogia minha franqueza. A mana Maria me diz sempre que eu falo demais; que nem tudo que se pensa se diz a qualquer um. Ela vai ficar furiosa quando souber que eu te disse tudo isto.

Eu — Obrigado. Então eu sou qualquer um?

Gogó — Não, pior do que isto. Você é o chefão da TFP.

Eu — Gogó, a civilização cristã está ruindo e a barbárie vai entrando por todas as brechas da muralha. Para a reerguer, é preciso reerguer os princípios e as virtudes morais em que se baseou.

Gogó — Reerguer a Idade Média, pois?

Eu — Certamente essas virtudes tiveram na Idade Média uma irradiação que entrou em ocaso nos séculos seguintes. Mas elas não são próprias só para a Idade Média. São para todos os tempos. Foi o declínio delas que causou a catástrofe atual. E é só restaurando-a, que uma nova era cristã poderá nascer.

Gogó — Este é bem um raciocínio estilo TFP. Retrógrado. Acanhado.

Eu — Olhe, recortei aqui para você este trecho de um jornalista bem moderno, Walter Lippmann. Ele nada tem de comum com a TFP: — "Nossa civilização só poderá ser mantida e restaurada pela recordação e redescoberta das verdades, e pelo restabelecimento dos hábitos virtuosos sobre os quais foi fundada".

* * *

Gogó estava agitado. Leu às carreiras o texto, e em lugar de responder foi pegando uns pacotes. O avião descia. E ele explicou: Maria mandou o Telésforo me esperar na perua dela desde as 5 horas. Não quero atrasar-me ainda mais.

Olhei o relógio. Eram 20:30.

E pensei com pena: "Pobre Telésforo..." Mas, ao mesmo tempo, percebi que Maria Gôndola não se dera o trabalho de esperar o irmão. E suspirei alegre. Agüentar o Gogó durante toda a viagem, e ainda ser forçado a uma prosinha com Maria Gôndola, era demais!

* * *

Para tranqüilizar meus leitores, devo dizer que Gogó e Maria Gôndola não existem. São produtos de minha imaginação.

Mas acho que há muito Gogó e muita Maria Gôndola perambulando por aí, neste mundo de hoje... a falar mal da TFP.