20 de
junho de 1971
No
avião, com Gogó
Entrei no avião que partia par o Rio, e ocupei minha poltrona. Decolamos
logo. Para me distrair, tomei um jornal. Estava sem graça. À mingua de
melhor, olhei de soslaio para o passageiro a meu lado. Era um tipo pouco
comum. Esguio, seco, trazia no alto de um pescoço comprido, uma cabeça
inesperada. A face era redonda e enorme, mas a caixa craniana,
excepcionalmente rasa. Dir-se-ia uma moeda com o verso trazendo olhos,
nariz e boca, e o reverso uma opulenta cabeleira grisalha. Entre o verso
e o reverso, uma superfície pequena, no qual se encaixavam duas orelhinhas. Os olhos eram inexpressivos, se bem que ligeiramente
saltados. As pálpebras inferiores, túmidas e caídas, formavam grandes
babados. Ele notou meu olhar. E então, com lentidão na voz bem timbrada,
me perguntou: "Plinio, lembra-se de mim?"
Era
evidentemente um conhecido de antigas eras, algum companheiro de
infância, talvez. Enquanto eu procurava ganhar tempo com as evasivas
clássicas "ora essa!", "há quanto tempo!" etc., ia me esforçando por
fazer uma reconstituição arqueológica, para ver que figura do passado me
era possível reconstruir com base naquela ruína. Porém, nada obtive. Até
o momento em que meus olhos se puseram ocasionalmente em seu pescoço,
onde um caroço pontudo subia e descia rapidamente. Em torno deste
caroço, tudo se ordenou e esclareceu — "Gogó", exclamei, "como vai
Você"? — Ele riu alegre. Apertamo-nos longamente as mãos. Pusemo-nos a
conversar.
* * *
Godofredo Gondra de Godói Gomes, este era o nome não desprovido de certa
pompa, do meu conhecido de infância. Claro está que os colegas tinham
simplificado o nome dando ao menino o apelido de Gogó.
--
Que fim tinha levado o Gogó? Qual foi sua carreira? O que fez na vida? —
Todos estes dados me faltavam para conversar com o homem. Lembrava-me
melhor de sua irmã, Maria Gondra de Godói Gomes. Mais abreviadamente,
para uso corrente, Maria Gondra. Desse nome, a malícia dos colegas
fizera, por sua vez, um apelido — Maria Gôndola — a fim de assinalar
que, por sua corpulência, ela ocupava nas rodas infantis o espaço, não
de uma menina, mas de uma gôndola. Maria Gôndola e o Gogó eram
unidíssimos. Ela, com muito mais personalidade, o influenciava a fundo.
Maria Gôndola se fez freira por volta de 1945, e se engajou logo no
movimento progressista nascente. Como de estilo, na era inaugurada por
Jango, participou de passeatas, teve casos com a polícia e foi
"aconselhada" a estudar no Exterior. Quando voltou, estava "aggiornata"
dos pés à cabeça. Não usava mais qualquer vestígio de hábito religioso,
e se pôs a morar num apartamento por aí — Ainda é freira? — Não sei. Nem
sei se ela sabe.
A
aeromoça passou oferecendo um cafezinho. Gogó aceitou e começou a sorver
a rubiácea. Isto cortou as saudações, e Gogó, estimulado pela bebida,
começou a conversar.
Gogó
— Pois é, Plinio, às vezes eu e a Maria lembramos juntos tanta coisa do
passado e falamos também de você. No que você havia de dar, com seus
livros, suas campanhas, sua "TPF"!
Eu —
Gogó, você se engana, a TFP não é minha. Eu é que sou dela. E com toda a
alma. Quanto à sigla, você bolostrocou. Não é "TPF". É TFP. Tradição,
Família e Propriedade.
Gogó
— Eu sei, eu sei! A Maria é que fala sempre "TPF". No começo, eu a
corrigia. Mas ela disse que na roda dela (não estranhe, o leitor, mas
Gogó nunca foi forte em Português) todos fazem questão de só dizer "TPF".
Contrapropaganda, você sabe? Pirraça. E ela se habituou a só dizer assim
— e Gogó sorriu com uma malícia oca, que procurava em vão ser ardida.
Não sei se, no momento, ele sentiu esse vazio. O fato é que, como se
fosse para enriquecer de substância o seu dito, Gogó acrescentou: — É
ardidinha a mana, mas é inteligente... — quanto a inteligente, Gogó
tinha uma tal ou qual razão, quanto a "ardidinha", tinha muitíssima.
Pois Maria Gôndola foi sempre um pote de pimenta.
Eu —
Então, Gogó, sua irmã não gostou da TFP? Nem você?
Gogó
— Francamente, não. Sou absolutamente contra a tradição. Cada geração
que vem ao mundo deve rejeitar tudo do passado, e construir por sua
própria conta, segundo sua própria inspiração. Nada de poupar a velheira
deixada pelos maiores.
Eu —
A tomar ao pé da letra o que você diz, cada nova geração deve pôr-se, de
início, no estado de barbárie, que é a estaca zero da qual todas as
civilizações atuais partiram. E desse estado deve reconstruir tudo
quanto foi feito pelos que a antecederam. É bem o que você quer?
Gogó
— Já lhe disse, é preciso acabar com a velheira, com o que não for
aproveitável. O resto pode ficar.
Eu —
Mas então não é mais todo o passado que deve ser destruído? É só a
velheira. Como você define, então, velheira?
Gogó
— Velheira é, por exemplo, a Idade Média, com seu ambiente confinado,
sua estagnação, suas desigualdades. Com seu protocolo, suas pompas, sua
moral rígida, seus dogmas, sua metafísica. Como detesto tudo isto! Maria
também detesta. Como os medievais difereriam dos gregos e romanos cuja
civilização, cheia de elementos perenes, não souberam conservar.
Eu —
Se diferiram tanto assim, Gogó, merecem seu elogio. Desprezaram o
passado e construíram um mundo próprio, peculiar. Na realidade, os
medievais é que fizeram chegar até nós os restos de cultura clássica,
que as invasões bárbaras haviam destruído.
Gogó
— Já disse, Plinio, tudo que vem da Idade Média é velheira.
Eu —
Curioso! O fator tempo não entra na sua definição de velheira! Uma
cultura anterior a Jesus Cristo, para você não é velha. Uma cultura
muito posterior o é... Então, velho é o que você e sua irmã acham
antipático, o que lhes choca os preconceitos?
Gogó
— Eu não tenho preconceitos. Preconceito é coisa medieval. É coisa boa
para vocês, la da turma do leão dourado sobre fundo rubro. Eu não tenho
comigo nada de medieval.
Eu —
Não corra tanto, Gogó. Você está coberto de coisas que lhe vêm da Idade
Média, seu relógio também. E também todos os botões da sua roupa.
Óculos, relógio mecânico, botão tudo isto vem da Idade Média. Você me
estendeu a mão, há pouco, para me cumprimentar. Esta forma de saudação
nasceu na Idade Média. Foi na Idade Média que se constituiu o idioma que
você fala. Se você quiser, posso mostrar-lhe com fatos e argumentos, que
a Idade Média foi bem diversa do que você pensa.
Gogó
— Lá vem você querendo agarrar-me como se fosse o sanhudo leão rompante
de seu heráldico estandarte. Uma velharia medieval inteiramente fora de
uso, essa heráldica. Quem hoje ainda cuida dela?
Eu —
Se sua consciência está em ordem, não tenha medo do nosso leão, Gogó:
ele só deita garras em quem não presta. Quanto à heráldica, está em
pleno uso no Brasil contemporâneo. Cada Estado, cada Município de nosso
País tem um brasão heráldico. A cidade de São Paulo, por exemplo. Você
não se lembra do lindo "Non ducor, duco" de nossa São Paulo?
Gogó
— E as desigualdades medievais? Detesto toda e qualquer desigualdade.
Você não vai me convencer de que a desigualdade é um bem!
Eu —
Você é comunista, Gogó. Pois quem detesta todas e quaisquer desigualdades só
pode querer uma sociedade sem classes. Isto é, uma sociedade em que
todos tenham o mesmo nível social e econômico. Ou seja, a sociedade
comunista.
Gogó
— Bem, assim, também não. Mas...
Eu —
Então não diga que você é contra toda e qualquer desigualdade. Há
algumas que você tem de aceitar, se não quer ser comunista... É bem
assim? Diga-me, então, que desigualdades você aceita, e quais rejeita.
O
caroço pontudo subia e descia rapidamente no pescoço de Gogó. Ele
procurava uma saída, porém não a encontrava.
Um
tranco. O avião acabava de pousar. Gogó se levantou apressadíssimo.
Queria sair logo. Perguntei-lhe se voltava no mesmo dia para São Paulo.
Disse-me que sim, no último avião. Pensei comigo: se calhar de voltarmos
juntos, vou pedir notícias de Maria Gôndola e aproveitarei para esgrimir
mais um pouco com o Gogó.
Quando olhei, ele já ia longe, metendo, sem mais reflexões, em um
compacto grupo de turistas, seu corpo esguio e sua cara com forma de
moeda.
Curioso, o homem. Discute como anda, às carreiras, fugindo de assunto a
assunto, e metendo em cada um deles, inconsideradamente, sua magra
inteligência e o olhar úmido e superficial procedente de sua cara de
moeda.
Há
tanto Gogó neste mundo, a deblaterar sobre coisas que não conhece, e não
entenderia se as conhecesse...