Folha de S. Paulo,
13 de
junho de 1971
Rija
ou cordialmente, como quiserem
Uma
semana inteira se passou sem que — a meu conhecimento — qualquer pessoa
se tenha manifestado em desacordo com a assertiva essencial de meu
último artigo. Essa assertiva é, entretanto, de molde a transtornar as
idéias de muita gente. E a transtorná-las em matéria de importância
transcendental, como é o progressismo dito católico. Volto, pois, ao
tema, para lhe desdobrar o conteúdo.
Assim
fazendo, dirijo a quantos se interessem pelo assunto um convite para
travarmos um amplo diálogo.
* * *
Começo por focalizar a matéria em seu aspecto concreto.
Os
progressistas — especialmente a imensa e influentíssima fração deles
filiada a organismos secretos como os "grupos proféticos" e o "IDOC" —
distinguem na História da Igreja três fases. A das perseguições vai
desde as origens até Constantino. Tendo o Imperador dado liberdade ao
culto católico no ano de 313, este em breve se tornou a Religião oficial
do Império. A segunda fase, inaugurada desse modo por Constantino,
durou, segundo os progressistas, até o pontificado de João XXIII e o
Concílio Vaticano II. A terceira fase, da Igreja democratizada, evoluída
e secularizada, abriu-se então e deverá durar até não se sabe quando.
Em
cada uma destas fases, a Igreja teria tido — sempre segundo os
progressistas — características próprias.
Na
primeira, a Igreja teria sido uma sociedade de almas obscura, desprezada
e perseguida. Era uma autêntica Igreja pobre, toda voltada para os
pobres, e inteiramente desprendida dos bens da terra. Despida de
pretensões professorais ou ânsias de mando, formava um todo espiritual e
místico, quase sem contornos dogmáticos, e com estruturas jurídicas
embrionárias e não muito definidas. Uma Igreja conciliadora, tratável,
adaptável aos tempos e aos lugares bem como às situações e inspirada
pelas moções operadas pelo Espírito Santo nas almas dos fiéis.
Na
segunda fase, Constantino cumulou a Igreja de riquezas e de poder. Uma
oligarquia de teólogos, filósofos e canonistas apossou-se então dela e a
transformou numa rainha dominadora de todos os povos cristãos. Ela
passou a ser como que uma fortaleza circundada por uma muralha de dogmas
sempre mais numerosos e por uma carapaça de estruturas jurídicas
definidas e de leis severas. Seus Papas tomaram ares de monarcas, seus
Bispos de príncipes, e seus Sacerdotes de nobres ou burgueses bem
instalados. Suas igrejas assumiram o esplendor de palácios. — Os pobres?
— A Igreja continuou por certo a se ocupar deles, suscitando incontáveis
obras de caridade e movendo os ricos e os poderosos à justiça e à
caridade para com os desvalidos e os fracos. Mas isto sem ser, ela
mesma, pobre. Mantendo os pequenos na submissão, em vez de os insuflar à
luta redentora contra os grandes. Sem encaminhar, enfim, o mundo para a
sociedade idealmente justa e conforme à dignidade humana, isto é, a
sociedade sem desigualdades, sem limitações, sem classes, para a qual
tende o homem.
Esta
Igreja teria sido a caudatária e a imitadora dos senhores feudais na
Idade Média, dos Reis absolutos no "Ancien Régime", e dos burgueses
depois da Revolução Francesa.
João
XXIII, Paulo VI e o Concílio Vaticano II teriam então vindo para
encerrar a fase constantiniana, e restituir à Igreja sua face primeva e
autêntica, lucidamente adaptada aos dias de hoje. Uma Igreja, pois, com
estruturas jurídicas elásticas, e os contornos doutrinários mais
flexíveis que se possam imaginar. Uma Igreja proletarizada, para os dias
proletarizados que se aproximam. Uma Igreja tanto quanto possível laica
e profana, para o homem dessacralizado de nossos dias. Uma Igreja
"compreensiva" para com a exacerbação erótica de nossos dias. Enfim, uma
Igreja guiada pelo homem, e não guia dele.
Em
suma, depois de caluniarem a Igreja do passado, os progressistas querem
desfigurar a Igreja do presente, transformando-a numa espécie de
república espiritual populista segundo o modelo iugoslavo.
Quem
conhece um pouco de protestantismo não deixará de ter notado a todo
momento, ao longo desta exposição da doutrina progressista, afloramentos
protestantes: livre exame, contestação do Papado, e até de toda a
Hierarquia, liberalismo, naturalismo e tendência à dessacralização,
objurgatórias contra a riqueza e o poder da Igreja, cumplicidade com a
impureza etc. E a par destes afloramentos protestantes, também os
comunistas: proletarização, sociedade sem classes, luta social, e daí
para frente.
Não é
minha intenção mostrar aqui quanto há de falso, em todo este aranzel.
Desejo apenas frisar que a tarefa de "desconstantinização" da Igreja
Católica importa em uma imensa revolução religiosa, a qual carrega
profundas implicações em todas ou quase todas as esferas da cultura, da
civilização e da vida. E fazer notar que esta revolução esbarra, em seu
curso, com um problema difícil.
Com
efeito, proclamar que a era constantiniana desfigurou a Igreja a fundo,
e que daí nasce um processo de deformação religiosa sempre mais funda ao
longo dos mil e seiscentos anos que ele durou, tudo isto importa em
fazer à Hierarquia uma acusação tremenda. Pois foram Papas, Bispos e
Clérigos, os propulsores máximos de toda esta aberração em marcha
crescente. — Onde, então, a infalibilidade da Igreja? E se se aceita que
ela não é infalível, o que resta dela?
A
saída, a única saída ao alcance dos progressistas — desde que desejem
conservar ares de católicos — consiste em afirmar que a Igreja é
infalível somente nos documentos do magistério extraordinário, isto é,
quando um Papa ou um Concílio, ao ensinarem uma verdade, declaram
explicitamente estar praticando um ato do magistério infalível. Ora,
como os dogmas assim definidos são pouco numerosos, todos os
ensinamentos dos Papas e dos Bispos anteriores a João XXIII e Paulo VI
podem ser reformados à vontade. A Igreja neles não empenhou sua
infalibilidade. Podem pois, os progressistas tachá-los
desembaraçadamente de errôneos e injustos, decrépito, e o que mais
queiram. O caminho para a "desconstantinização" está aberto, desse modo.
Para a "protestantização" e a "comunistização" também.
Assim
tudo se arranja, pensam eles...
* * *
Pelo
contrário, o caminho está trancado e nada se arranja. Pois, mostrou meu
lúcido e culto amigo Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira (cfr.
"Catolicismo", outubro de 1967), as verdades ensinadas sem caráter
dogmático, em documentos do ensino ordinário, por uma sucessão longa e
contínua de Papas, assumem, "ipso facto" caráter dogmático. Assim, mesmo
fora dos documentos do magistério extraordinário da Igreja, há toda uma
muralha de doutrinas indestrutíveis. E não de doutrinas como de leis, na
medida em que estas sejam deduzidas necessariamente das doutrinas.
A
Igreja sonhada pelos progressistas, como há pouco descrevi, não é a
Igreja em nova fase. Ela não passa de uma anti-Igreja.
E
todo proveito que o comunismo espera tirar da Igreja se esvai com isto.
* * *
Já
que é este um ponto chave da imensa controvérsia levantada pelo
progressismo, pergunto se não há um, um só, progressista disposto a
contestar a tese sólida e inconcussa sustentada pelo sr. Arnado Vidigal
Xavier da Silveira.
Aqui
estamos, para essa eventualidade, dispostos para o diálogo. Rijamente ou
cordialmente. Como quiserem...
-- Ou
preferem os progressistas confessar, pelo silêncio, que o princípio tão
oportunamente posto em foco pelo sr.
Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira é verdadeiro?