Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 6 de junho de 1971

Papas e propriedade privada

Recebi esta carta:

"Não é o sr. Jeroboão Cândido Guerreiro, que agora lhe escreve. Aquele correspondente de nome estranho (ou de pseudônimo bem achado) lhe disse umas boas verdades, das quais o sr. soube esquivar-se com as estocadas de seus silogismos e as piruetas de sua dialética. É forçoso dizer que, em conseqüência, o bom sr. Jeroboão, ao final da resposta do sr., ficou em postura deveras desagradável. E isto apesar de ele estar com a razão, pelo menos a meu ver.

"Ignoro se, com a resposta que o sr. me der, ficarei também eu enredado nas famigeradas malhas de sua argumentação. O fato, porém, é que também eu tenho reparos a lhe apresentar. E na linha dos do sr. Jeroboão. Não tenho o fogo nem a paixão dele. Tenho, isto sim, um pouco de lógica. E baseado nela não receio de o enfrentar, Dr. Plinio.

"Entro pois em liça. O objeto de minha carta é seu último artigo. Nele o sr. pretendeu justificar a posição da TFP em matéria de propriedade privada. E para isso se baseou em citações de alguns papas. Estaria isto muito bem se fossem Papas dos dias de hoje. Acontece, porém, que o mais recente dos Pontífices citados pelo sr. foi Pio XII, falecido em 1958. Nem uma menção faz o sr. de documentos de João XXIII, nem de Paulo VI, o Concílio Ecumênico Vaticano II parece inteiramente ignorado pelo sr.

"Ora, como o sr. bem sabe, a Igreja passou por mutações imensas sob os dois últimos Papas, tão evoluídos, tão arejados, tão humanos.

“O Concílio acabou com a atmosfera confinada em que se estiolava a cultura católica, e abriu portas e janelas para as correntes de ar renovadoras da cultura moderna. Tudo isto deu à Igreja um aspecto inteiramente diverso. Sei que esse aspecto não é do agrado do sr. Mas, em compensação — e que magnífica compensação — ele atraiu para a religião simpatias vindas até das mais remotas paragens ideológicas.

"Assim, um ateu categórico, de espírito lúcido e coração bondoso, Salvador Allende (imagino sua carranca, Dr. Plinio, ao ler este nome!) pôde escrever sobre a Igreja nova estas palavras magníficas:

"A Igreja Católica sofreu mudanças fundamentais. Durante séculos, a Igreja Católica defendeu os interesses dos poderosos. Hoje, depois de João XXIII, ela se orientou para transformar o Evangelho de Cristo em realidade, pelo menos em alguns lugares. Tive ocasião de ler a Declaração dos Bispos em Medelin, e a linguagem que usam é a mesma que usamos desde nossa iniciação na vida política, há 30 anos. Naquela época, éramos condenados por tal linguagem que hoje é empregada pelos bispos católicos. Acredito que a Igreja não será fator de oposição ao governo da Unidade Popular. Ao contrário, será um elemento a nosso favor, porque estaremos tentando converter em realidade o pensamento cristão. Além disso, haverá a mais total liberdade de crença religiosa".

"Como é natural (é o anônimo que retoma agora a palavra) estes conceitos chegaram ao conhecimento de Paulo VI e do Cardeal chileno. O que fizeram eles? Discordaram? Arrepiaram-se? Recusaram a mão estendida pelo presidente marxista? Pio XII e seus antecessores condenaram a ‘politique de la main tendue’. Bem diversa é a conduta de Paulo VI. Ele apertou resolutamente a mão de Allende. E o mesmo fez o cardeal chileno. Ambos sorriram comprazidos. O cardeal visitou o chefe marxista em nome do Papa, deu-lhe uma Bíblia, abraçou-o, prometeu-lhe colaboração. Quem cala consente, diz o provérbio. Muito mais consente quem sorri, visita, felicita e colabora.

"Repito, Pio XII e seus antecessores fariam exatamente o oposto do que fez Paulo VI. Sobretudo não agiria assim Pio X, pelo qual se vê que o sr. tem um fraco.

"Mas as coisas mudaram totalmente na Igreja. E, ao contrário do que o sr. pensa, podiam ter mudado.

"Com efeito, só não é mutável a parte dos ensinamentos da Igreja, contida em definições dogmáticas ex-catedra. Ora, os documentos sobre propriedade privada citados pelo sr. não são definições dogmáticas. Logo são mutáveis. E mudaram. Tanto é que mudaram, que o sr. nada pôde citar de João XXIII, Paulo VI ou do Concílio, no sentido dos documentos pontifícios anteriores.

"Saia-se agora desta, Dr. Plinio. A conseqüência a que se chega é que o sr. sabia do ponto fraco de sua argumentação (isto é, a posição esquerdista da Igreja nova, e pretendeu passá-lo sob silêncio. Esperou, sem dúvida, que ninguém metesse o dedo na chaga. Pois aqui está meu dedo metido por inteiro na ferida. Vamos ver com que estrebuchos o sr. se sairá. Se é que conseguirá sair-se...".

* * *

Muita gente não responde cartas anônimas. Mas quando alguma delas exprime uma opinião que não é apenas do missivista medroso e agressivo, mas — segundo se nota — é também a de toda uma família de almas, em atenção a esta última eu respondo de bom grado. Máxime quando a carta — e é este o caso — a par de impertinências e grosserias, contém lampejos de espírito e até de inteligência.

Transcrita na íntegra a longa missiva para mostrar ao anônimo que não lhe temo as invectivas, não me resta espaço para responder a tudo quanto ele escreve. Mas escolho para minha réplica um ponto-chave que, derrubado, arrasta em sua queda tudo quanto o anônimo alega.

Antes de o fazer, quero entretanto dizer uma palavra sobre São Pio X. Não tenho por ele "um fraco". Tenho-lhe verdadeira devoção, pois é um Santo canonizado pela Igreja. E um muito grande Santo. Peço aqui a São Pio X que do céu abra os olhos de todos os que pensam como o missivista.

* * *

Exporei minha argumentação com calma e clareza. Diga meu anônimo, ou quem como ele pensa, no que não tenho razão:

1) Os ensinamentos dos Pontífices anteriores a João XXIII citados em meu último artigo, são em sua essência iguais aos de todos os Papas anteriores que trataram da matéria;

2) Ora, quando uma longa sucessão de Papas, em Documentos do magistério ordinário (cada um dos quais não tem, portanto, o caráter de ensinamento infalível), afirmam a mesma doutrina, esta sucessão confere caráter dogmático a tal doutrina;

3) Sendo este o caso concreto quanto ao essencial dos textos sobre propriedade privada que citei, tais textos contêm verdades dogmáticas;

4) E se algum Papa ensinasse o contrário em documento, não deveria ser seguido pelos fiéis. Pois um ensinamento não-infalível e ordinário não poderia prevalecer contra um ensinamento dogmático;

5) Assim, estou inteiramente à vontade baseando-me nos textos em que me baseei. E em minha argumentação não existe o "ponto fraco" que o anônimo imaginou ver.

Abstenho-me de refutar muitas outras afirmações gravemente errôneas do anônimo, pois a isto me força o amor à brevidade.

* * *

De toda esta argumentação, o ponto-chave é o de n.º 2. Ele de pé, o resto da argumentação é irrecusável. Ele derrubado, todo o resto também cai.

A pergunta a que tenho de responder agora é, portanto, a seguinte: no que se funda a asserção contida no ponto 2?

A este respeito, um dos diretores da TFP, brilhante e vigoroso especialista em matérias como esta — o sr. Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira — publicou estudo notável em "Catolicismo" (n.º 202, outubro de 1967). Prova ele cabalmente que ensinamentos do magistério ordinário da Igreja podem, em casos como este (e o sr. Arnaldo V. Xavier da Silveira fala especificamente de propriedade privada), assumir o caráter de infalibilidade. Pois a sucessão dos papas que afirmaram a legitimidade da propriedade privada é antiga e contínua.

Não sei se meu missivista anônimo lê "Catolicismo". É uma excelente leitura, que instantemente lhe recomendo. Pois procure ali o artigo indicado, e depois me escreva de novo... se quiser.

Simplesmente previno-o de que, se desejar responder ao artigo do meu amigo, seja muito cauto. O estudo do sr. Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira correu o Brasil e o mundo sem levantar objeções...

* * *

E fica assim emudecido meu objetante anônimo, tão verboso. Com uma estocada só, sem truque nem piruetas.


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