Folha de S. Paulo,
6 de
junho de 1971
Papas
e propriedade privada
Recebi esta carta:
"Não
é o sr. Jeroboão Cândido Guerreiro, que agora lhe escreve. Aquele
correspondente de nome estranho (ou de pseudônimo bem achado) lhe disse
umas boas verdades, das quais o sr. soube esquivar-se com as estocadas
de seus silogismos e as piruetas de sua dialética. É forçoso dizer que,
em conseqüência, o bom sr. Jeroboão, ao final da resposta do sr., ficou
em postura deveras desagradável. E isto apesar de ele estar com a razão,
pelo menos a meu ver.
"Ignoro se, com a resposta que o sr. me der, ficarei também eu enredado
nas famigeradas malhas de sua argumentação. O fato, porém, é que também
eu tenho reparos a lhe apresentar. E na linha dos do sr. Jeroboão. Não
tenho o fogo nem a paixão dele. Tenho, isto sim, um pouco de lógica. E
baseado nela não receio de o enfrentar, Dr. Plinio.
"Entro pois em liça. O objeto de minha carta é seu último artigo. Nele o
sr. pretendeu justificar a posição da TFP em matéria de propriedade
privada. E para isso se baseou em citações de alguns papas. Estaria isto
muito bem se fossem Papas dos dias de hoje. Acontece, porém, que o mais
recente dos Pontífices citados pelo sr. foi Pio XII, falecido em 1958.
Nem uma menção faz o sr. de documentos de João XXIII, nem de Paulo VI, o
Concílio Ecumênico Vaticano II parece inteiramente ignorado pelo sr.
"Ora,
como o sr. bem sabe, a Igreja passou por mutações imensas sob os dois
últimos Papas, tão evoluídos, tão arejados, tão humanos.
“O
Concílio acabou com a atmosfera confinada em que se estiolava a cultura
católica, e abriu portas e janelas para as correntes de ar renovadoras
da cultura moderna. Tudo isto deu à Igreja um aspecto inteiramente
diverso. Sei que esse aspecto não é do agrado do sr. Mas, em compensação
— e que magnífica compensação — ele atraiu para a religião simpatias
vindas até das mais remotas paragens ideológicas.
"Assim, um ateu categórico, de espírito lúcido e coração bondoso,
Salvador Allende (imagino sua carranca, Dr. Plinio, ao ler este nome!)
pôde escrever sobre a Igreja nova estas palavras magníficas:
"A
Igreja Católica sofreu mudanças fundamentais. Durante séculos, a Igreja
Católica defendeu os interesses dos poderosos. Hoje, depois de João
XXIII, ela se orientou para transformar o Evangelho de Cristo em
realidade, pelo menos em alguns lugares. Tive ocasião de ler a
Declaração dos Bispos em Medelin, e a linguagem que usam é a mesma que
usamos desde nossa iniciação na vida política, há 30 anos. Naquela
época, éramos condenados por tal linguagem que hoje é empregada pelos
bispos católicos. Acredito que a Igreja não será fator de oposição ao
governo da Unidade Popular. Ao contrário, será um elemento a nosso
favor, porque estaremos tentando converter em realidade o pensamento
cristão. Além disso, haverá a mais total liberdade de crença religiosa".
"Como
é natural (é o anônimo que retoma agora a palavra) estes conceitos
chegaram ao conhecimento de Paulo VI e do Cardeal chileno. O que fizeram
eles? Discordaram? Arrepiaram-se? Recusaram a mão estendida pelo
presidente marxista? Pio XII e seus antecessores condenaram a ‘politique
de la main tendue’. Bem diversa é a conduta de Paulo VI. Ele apertou
resolutamente a mão de Allende. E o mesmo fez o cardeal chileno. Ambos
sorriram comprazidos. O cardeal visitou o chefe marxista em nome do
Papa, deu-lhe uma Bíblia, abraçou-o, prometeu-lhe colaboração. Quem cala
consente, diz o provérbio. Muito mais consente quem sorri, visita,
felicita e colabora.
"Repito, Pio XII e seus antecessores fariam exatamente o oposto do que
fez Paulo VI. Sobretudo não agiria assim Pio X, pelo qual se vê que o
sr. tem um fraco.
"Mas
as coisas mudaram totalmente na Igreja. E, ao contrário do que o sr.
pensa, podiam ter mudado.
"Com
efeito, só não é mutável a parte dos ensinamentos da Igreja, contida em
definições dogmáticas ex-catedra. Ora, os documentos sobre propriedade
privada citados pelo sr. não são definições dogmáticas. Logo são
mutáveis. E mudaram. Tanto é que mudaram, que o sr. nada pôde citar de
João XXIII, Paulo VI ou do Concílio, no sentido dos documentos
pontifícios anteriores.
"Saia-se agora desta, Dr. Plinio. A conseqüência a que se chega é que o
sr. sabia do ponto fraco de sua argumentação (isto é, a posição
esquerdista da Igreja nova, e pretendeu passá-lo sob silêncio. Esperou,
sem dúvida, que ninguém metesse o dedo na chaga. Pois aqui está meu dedo
metido por inteiro na ferida. Vamos ver com que estrebuchos o sr. se
sairá. Se é que conseguirá sair-se...".
* * *
Muita
gente não responde cartas anônimas. Mas quando alguma delas exprime uma
opinião que não é apenas do missivista medroso e agressivo, mas —
segundo se nota — é também a de toda uma família de almas, em atenção a
esta última eu respondo de bom grado. Máxime quando a carta — e é este o
caso — a par de impertinências e grosserias, contém lampejos de espírito
e até de inteligência.
Transcrita na íntegra a longa missiva para mostrar ao anônimo que não
lhe temo as invectivas, não me resta espaço para responder a tudo quanto
ele escreve. Mas escolho para minha réplica um ponto-chave que,
derrubado, arrasta em sua queda tudo quanto o anônimo alega.
Antes
de o fazer, quero entretanto dizer uma palavra sobre São Pio X. Não
tenho por ele "um fraco". Tenho-lhe verdadeira devoção, pois é um Santo
canonizado pela Igreja. E um muito grande Santo. Peço aqui a São Pio X
que do céu abra os olhos de todos os que pensam como o missivista.
* * *
Exporei minha argumentação com calma e clareza. Diga meu anônimo, ou
quem como ele pensa, no que não tenho razão:
1) Os
ensinamentos dos Pontífices anteriores a João XXIII citados em meu
último artigo, são em sua essência iguais aos de todos os Papas
anteriores que trataram da matéria;
2)
Ora, quando uma longa sucessão de Papas, em Documentos do magistério
ordinário (cada um dos quais não tem, portanto, o caráter de ensinamento
infalível), afirmam a mesma doutrina, esta sucessão confere caráter
dogmático a tal doutrina;
3)
Sendo este o caso concreto quanto ao essencial dos textos sobre
propriedade privada que citei, tais textos contêm verdades dogmáticas;
4) E
se algum Papa ensinasse o contrário em documento, não deveria ser
seguido pelos fiéis. Pois um ensinamento não-infalível e ordinário não
poderia prevalecer contra um ensinamento dogmático;
5)
Assim, estou inteiramente à vontade baseando-me nos textos em que me
baseei. E em minha argumentação não existe o "ponto fraco" que o anônimo
imaginou ver.
Abstenho-me de refutar muitas outras afirmações gravemente errôneas do
anônimo, pois a isto me força o amor à brevidade.
* * *
De
toda esta argumentação, o ponto-chave é o de n.º 2. Ele de pé, o resto
da argumentação é irrecusável. Ele derrubado, todo o resto também cai.
A
pergunta a que tenho de responder agora é, portanto, a seguinte: no que
se funda a asserção contida no ponto 2?
A
este respeito, um dos diretores da TFP, brilhante e vigoroso
especialista em matérias como esta — o sr. Arnaldo Vidigal Xavier da
Silveira — publicou estudo notável em "Catolicismo" (n.º 202, outubro de
1967). Prova ele cabalmente que ensinamentos do magistério ordinário da
Igreja podem, em casos como este (e o sr. Arnaldo V. Xavier da Silveira
fala especificamente de propriedade privada), assumir o caráter de
infalibilidade. Pois a sucessão dos papas que afirmaram a legitimidade
da propriedade privada é antiga e contínua.
Não
sei se meu missivista anônimo lê "Catolicismo". É uma excelente leitura,
que instantemente lhe recomendo. Pois procure ali o artigo indicado, e
depois me escreva de novo... se quiser.
Simplesmente previno-o de que, se desejar responder ao artigo do meu
amigo, seja muito cauto. O estudo do sr. Arnaldo Vidigal Xavier da
Silveira correu o Brasil e o mundo sem levantar objeções...
* * *
E
fica assim emudecido meu objetante anônimo, tão verboso. Com uma
estocada só, sem truque nem piruetas.