Folha de S. Paulo,
16 de
maio de 1971
Comunismo não ateu: pergunta a um Bispo
Em
nota publicada pela "Última Hora" de 8 do corrente, o Sr. Bispo D. Ivo
Lorscheiter, secretário-geral da CNBB, fez algumas declarações sobre a
TFP. Delas tomei conhecimento com vivo interesse, não só em razão das
altas funções exercidas pelo Prelado no órgão representativo dos bispos
do Brasil, como também pelo renome de sua cultura teológica. À medida
que eu ia percorrendo a nota, vieram-me ao espírito reflexões, que deixo
aqui consignadas.
* * *
Antes
de tudo, impressionou-me favoravelmente o real esforço que o Sr. D.
Lorscheiter fez — segundo ele mesmo nos informa — para se manifestar em
termos imparciais, em relação à TFP: "Confesso", asseverou ele, "não
julgar muito fácil dizer as palavras justas e oportunas" sobre a TFP. E,
por isto, temendo ser "descaridoso, injusto ou unilateral" para conosco,
pediu que suas apreciações fossem por nós entendidas simplesmente como
“um apelo à reflexão equilibrada e a atitudes construtivas de
cooperação”.
Como
sinal de sua imparcialidade, o Sr. D. Lorscheiter fez algumas
referências favoráveis à TFP. Não só ele declarou, na nota, respeitar as
"intenções pessoais e íntimas dos dirigentes, membros e simpatizantes da
TFP", como asseverou ser "óbvio" que esta apresenta "valores positivos
em algumas das suas atitudes e iniciativas nos esforços pela defesa da
família, que motivaram (...) um programa de orações neste mês de maio".
Tudo
isto posto, e como contrapartida à "sinceridade e caridade" com que a
nós queria referir-se, d. Ivo propôs que a "TFP reexamine sua razão de
ser, seus objetivos, seus métodos de ação e os princípios iluminadores
de seu programa". E acrescentou: "Sugiro à TFP que faça uma honesta
autocrítica sobre sua recente atitude de contestar publicamente
documentos aprovados por todos os bispos presentes à XII Assembléia
Geral de Belo Horizonte".
Postos assim em sua verdadeira perspectiva os propósitos de
imparcialidade de d. Ivo, o que dizer?
Preliminarmente, que não é fácil compreender todo este esforço feito por
S. Excia. para ser imparcial nem toda a sua perplexidade em opinar sobre
uma entidade como a TFP, clara, simples, lógica. A tal ponto clara,
simples e lógica, que em todos os quadrantes da opinião, o entusiasmo ou
o ódio se afirmam a respeito dela sem ambigüidades nem vacilações, de
modo franco e categórico.
Dir-se-ia, ao ler o texto de d. Ivo, que ao falar sobre a TFP, ele
sentiu dentro de si violentas propensões à parcialidade, e procurou
contê-las.
Se
assim é, custa-me compreender a razão destas propensões na alma de um
bispo. Respeito entretanto seu empenho em freá-las. Mas ao mesmo tempo,
eu me pergunto se S. Excia. teve inteiro êxito neste esforço. Com a
devida vênia, opto pela negativa.
* * *
Explico-me.
O
ilustre secretário da CNBB se referiu, em sua nota, a uma sociedade,
como a TFP, que tem numerosas obras editadas. Essas obras tiveram larga
repercussão e estão nas mãos de todos. A par disto, a TFP fez várias
campanhas públicas, que se estenderam por todo o País. Tendo à
disposição tão abundante material para formar um juízo sobre a TFP, o
primeiro cuidado de d. Ivo, do ponto de vista da imparcialidade, deveria
consistir em o estudar atentamente. E, depois, de sobre ele emitir um
juízo. Se nossos livros são bons ou maus, se nossa campanhas são boas ou
más, diga-o d. Ivo. Nisto consiste um pronunciamento imparcial. Pode
estar seguro o douto prelado, de que receberíamos com todo o respeito e
examinaríamos a fundo quanto ele houvesse por bem dizer-nos.
Mas
d. Ivo seguiu outro caminho. Com o espírito povoado de impressões
desfavoráveis a nosso respeito, não se deu ao trabalho de estudar
devidamente, nem as obras nem as campanhas da TFP. E publicou, a
respeito desta, uma nota que é todo um tecido de suspeitas não
averiguadas. A título de ser imparcial, limitou-se a incrustar no texto
alguns poucos elogios.
Desta
suspeitas, pode ter idéia o leitor através de dois exemplos.
D.
Ivo elogia as orações que fizemos neste mês de maio. Mas logo, colada ao
elogio, vem uma suspeita: ele elogia, sim, essas orações, contanto que
sejam realizadas "dentro das regras de todo ato religioso". Parece-me
estranha a suspeita de que nossas orações violem tais regras. — Mas se
S. Excia. abriga tal suspeita, por que não manda examinar essas orações?
— Nada lhe seria mais fácil, já que elas se realizaram diante de um
oratório que dá diretamente para a calçada. Pelo contrário, S. Excia.
não tira a limpo o que há, declarando a todos a sua desconfiança. Ainda
uma vez, e sempre com a devida vênia, pergunto: pode-se chamar a isto de
imparcialidade?
Outro
exemplo. — S. Excia. se mostra receoso de que a TFP seja um "fator de
lamentável desunião e uma escola deformadora de mentalidades". Ora, na
Igreja, desune quem cai em erro. E une quem fica fiel à verdade. Quando
a TFP polemiza — com um pe. Comblin, por exemplo — não divide, portanto,
mas une. Se caímos em erro, seria justo e caridoso no-lo dizer. Se não
caímos, se, pelo contrário, defendemos a verdade com força e cortesia,
no que somos "lamentável fator de desunião"?
Análogo raciocínio poderia ser feito quanto à "escola deformadora de
mentalidades".
* * *
Eu
não quereria que minhas palavras fossem apenas uma defesa da TFP. Desejo
chegar a algo mais positivo. Assim, permita-me D. Ivo um pedido. Parece
que — segundo sua nota — nossos pronunciamentos e atitudes acerca da
família têm merecido, ao menos em parte, o seu agrado. Mas, D. Ivo só
nos elogia no que concerne à família. É o caso de perguntar, pois, o que
pensa ele sobre o que temos escrito a respeito da tradição e da
propriedade. Especialmente a respeito da propriedade, já que sobre
tradição temos escrito com menos freqüência.
Se
não me engano, da omissão de D. Ivo a tal respeito se deve deduzir que
este é o ponto álgido sobre o qual mais fundas são as suas reservas.
Pois, em nome da imparcialidade, peço a S. Excia que forme um juízo a
respeito e o externe.
A
propriedade individual constitui, de si, um tema muito vasto. Dentro
dele proponho a D. Ivo que se manifeste especialmente sobre um ponto.
Suponhamos que em algum país — na Polônia ou na Itália ou no Brasil, por
exemplo — conquistasse o poder um grupo de católicos de extrema
esquerda. Esses católicos, por definição, não seriam ateus. — Seriam
católicos dóceis aos ensinamentos tradicionais dos papas? — A questão —
para os efeitos deste artigo — não vem ao caso. O certo é que, ateus,
eles não o seriam.
Suponhamos, ainda, que esses católicos quisessem instituir um regime
econômico-social em que a propriedade individual fosse abolida, passando
todos os bens para o poder do Estado. Ou de cooperativas molochs
congêneres. E admitamos que, ao mesmo tempo, esses católicos prometessem
à Igreja toda a liberdade de culto.
Como
vê D. Ivo, tratar-se-ia de instaurar a comunidade de bens, com
fundamento, não no marxismo materialista e ateu, porém numa
interpretação — falsa, disto estou certo — da doutrina católica.
Pergunto a D. Ivo se, em seu entender, um tal regime poderia ser aceito
pelos católicos. A pergunta redunda nesta outra: o anticomunismo é uma
atitude obrigatória para o católico só quando o fundamento doutrinário
invocado para a comunidade de bens for ateu? Ou também quando for um
fundamento religioso?
Por
mim, não tenho dúvida de que um regime econômico-social que importe em
comunidade de bens é — em um como em outro caso — inaceitável para a
consciência católica. Pensa assim D. Ivo?
Parece-me que a resposta a esta questão é fundamental para se julgar a
TFP. Peço pois a D. Ivo que a responda com a necessária clareza e a
imparcialidade que todos devemos desejar.
* * *
Um
outro pedido, por fim. Do que a TFP tem difundido, a única coisa que D.
Ivo leu parece ser um artigo que publiquei na Folha de S. Paulo
relativamente ao pronunciamento da XII Assembléia Geral da CNBB. Seu
título é "Dois
pesos e duas medidas". Examinei minha consciência antes de o
escrever, quando o entreguei ao prelo, e agora mais uma vez. Nele nada
percebo de censurável. Na nota de D. Ivo, não vislumbro em que meu
artigo o desagradou. — Quereria S. Excia. esclarecer-me a respeito,
dizendo no que foi?
* * *
Aqui
ficam as reflexões e as perguntas que a nota de D. Ivo Lorscheiter me
sugeriu. Apresento-as ao Prelado, com a reafirmação de todo o respeito
com que acolherei sua eventual resposta.