Folha de S. Paulo,
2 de
maio de 1971
A
reforma agrária no programa do MDB
Ao
término da concentração realizada há dias em Porto Alegre, o MDB
publicou um elenco de vinte princípios que constitui a síntese
programática do partido. Destaco o item 11:
--
"Imediata realização de uma profunda reforma agrária, sem recuos e sem
distorções, atendida a advertência do Concílio Vaticano II: ‘Deus
destinou a terra e tudo o que nela existe ao uso de todos os homens e
todos os povos, de modo que os bens da criação afluam com equidade às
mãos de todos, segundo as regras da justiça, inseparável da caridade."
Antes
de entrar na análise desse texto, julgo necessário acentuar que, ao
fazê-la, não me influencia o mais leve sentimento partidário. Sabem os
meus leitores que, na Constituinte Federal de 1934, representei uma
entidade tipicamente extrapartidária, como seja a Liga Eleitoral
Católica. De então para cá, não aceitei a inclusão de meu nome em
qualquer partido político. Falo, pois, sem qualquer preconceito
favorável ou contrário ao MDB.
* * *
No
texto que citei, parece-me presente o academismo que, de pai para filho,
e de filho para neto, o Partido Democrático comunicou a toda a sua
descendência política, isto é, o Partido Constitucionalista, a UDN e o
MDB.
Antes
de tudo, é de se notar, neste sentido, a correção impecável, e, quase
diria, um pouco aristocrática, da forma tanto do item 11 quanto de toda
a declaração de princípios. Eu o assinalo com prazer, nestes dias em que
a vulgaridade da linguagem e das atitudes se vai tornando sempre mais
freqüente.
Paradoxalmente, chamou-me a atenção a ênfase, um tanto demagógica, da
adjetivação. O MDB quer uma reforma agrária, e a quer "imediata",
"profunda", "sem recuos e sem distorções". Tem-se a sensação de que toda
esta sobrecarga de qualificativos obedece ao propósito de apostar com o
governo uma corrida para a conquista das massas agro-reformistas. O MDB
exige, assim, para já e com profundidade, uma reforma que o poder
público — segundo ele parece insinuar — estaria fazendo aos poucos e com
um tal ou qual comedimento.
Elegância de forma e demagogismo ingênuo de conteúdo são duas
características do academismo. Falei de ingenuidade, e com razão. Pois,
no caso, ela está bem presente. Os espíritos acadêmicos, nas quatro
paredes de seu gabinete, imaginam as massas sempre sedentas de reformas.
E nisto se enganam freqüentemente. — No caso concreto, onde estão as
multidões agro-reformistas que o MDB tão sofregamente quer seduzir? —
Nosso homem do campo é ordeiro e bom. Jango, com uma força de propulsão
para a esquerda muito mais autêntica e possante do que a do MDB, não
conseguiu mover à revolta o operariado rural. E o confessou em discurso
alguns dias antes de sua queda. D. Helder é sem dúvida dotado, senão de
eloquência, pelo menos de artes cênicas mais eficazes para a demagogia
do que o academismo dos dirigentes do MDB. E também ele não o conseguiu.
Disto a TFP tem prova provada. De meados de julho a princípios de
setembro do ano passado, uma de nossas caravanas percorreu de norte a
sul a zona canavieira de Pernambuco, fazendo propaganda de publicações
nossas. Misturou-se ela inteiramente com a população das cidades e
povoados, e foi por toda parte muito bem acolhida, realizando sessões em
salas superlotadas. Isto até mesmo na cidade do Cabo, do pe. Melo, por
muitos considerada reduto esquerdista impenetrável. As afirmações que
aqui faço não são palavras no ar. A TFP possui um audiovisual dessa
caravana, que documenta a veracidade do que assevero. Esse audiovisual
está à disposição de todos os interessados...
Concluo. Há pois uma ingenuidade toda acadêmica nos senhores do MDB, ao
imaginarem que as massas rurais revoltas existem, e que sentenças bem
buriladas e enfáticas, sobre reforma agrária, as possam lançar à luta
com maior êxito do que Jango e d. Helder.
A meu
ver, a conseqüência tática da atitude agro-reformista ribombante do MDB
é bem outra do que esperam seus mentores. Ela afastará do partido muitos
fazendeiros. Não vejo que lhe ganhe muitos trabalhadores. Males do
academismo...
* * *
O
item 11 apresenta, entretanto, outro aspecto importante, e este digno de
todo o encômio. A fim de justificar sua posição agro-reformista, o MDB
cita o Concílio Vaticano II. E com isto reconhece a transcendência do
aspecto religioso e moral na questão agrária.
Há,
com efeito, sobretudo nas cúpulas das classes produtoras, não poucas
pessoas que, ao discorrer sobre a reforma agrária, o fazem "sapamente",
isto é, em termos meramente econômicos, como se a Religião e a Moral
nada tivessem que ver com o assunto. Ora, o povo brasileiro tem sua
consciência jurídica e moral formada segundo o imutável princípio
cristão de que toda desapropriação deve ser feita mediante uma
indenização correspondente ao preço real do bem expropriado. O
agro-reformismo quer que a indenização se faça a preço marcadamente
inferior, e pago com títulos públicos de um valor absolutamente incerto.
A reforma agrária assim entendida cria, pois, para nosso povo
fundamentalmente católico, um trauma moral e religiosos inegável. É o
que "per longum et latum" ficou provado no livro "Reforma
Agrária — Questão de Consciência", do qual sou um dos
autores.
Fazer
a reforma agrária abstraindo deste trauma não importa em o eliminar, mas
em criar no país um mal-estar profundo. E este mal-estar se irá
agravando, à medida que a desapropriação de terras pertencentes a
particulares (e excluo assim a justa e oportuna desapropriação, pela
União, de terras pertencentes a Estados ou municípios) se for tornando
mais freqüente.
Tudo
isto, sentiu-o o MDB. E tentou resolver o problema de frente, tomando em
consideração o seu aspecto religioso e moral. Nisto, inegavelmente,
andou bem.
Mas a
este elogio devo, desde logo, somar uma crítica. É que o texto do
Concílio Vaticano II, citado no item 11, por si só não demonstra a
legitimidade de uma reforma agrária. — Com efeito, onde a prova de que
"in concreto", no Brasil, o atual regime agrário não produz — na medida
do possível — a afluência eqüitativa dos bens da criação em mãos de
todos? E onde a prova de que a reforma agrária melhoraria a difusão da
riqueza? — Ora, sem tal prova, nada feito...
* * *
Antes
de prosseguir, importa acentuar que minha objeção quanto ao modo de
calcular e pagar o preço dos imóveis rurais, preconizado pelos
agro-reformistas, não é a única. Para desapropriar alguém do que lhe
pertence, é preciso que haja uma utilidade pública ou social comprovada.
— Ora, onde a demonstração de que as desapropriações agro-reformistas
são necessárias ou úteis ao País? — Esta prova, até agora, não foi
feita. Pois ninguém demonstrou que dividir terras lhes aumenta
necessariamente a produção. Antes, há vários argumentos em sentido
contrário. De onde a iliceidade da reforma agrária me parece certa.
* * *
Mas,
perguntará algum leitor, por que essas objeções se voltam apenas para a
reforma agrária proposta pelo MDB? E a do governo?
Distingo. Enquanto esta última importa em promover a colonização de
terras públicas inaproveitadas, tem todo o meu aplauso. Ela é útil, mais
do que isto, necessária e urgente. Enquanto ela importa em desapropriar
imóveis particulares sem comprovada necessidade, e sem indenização
correspondente ao preço real, estou em desacordo.
E
estou em desacordo tranqüilamente, pois sei que — ao contrário do que d.
Helder tem assoalhado no exterior — o governo brasileiro reconhece a
liberdade da crítica respeitosa, e formulada segundo os ditames da lei.
Máxime quando se funda em razões de índole religiosa.