Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 2 de maio de 1971

A reforma agrária no programa do MDB

Ao término da concentração realizada há dias em Porto Alegre, o MDB publicou um elenco de vinte princípios que constitui a síntese programática do partido. Destaco o item 11:

-- "Imediata realização de uma profunda reforma agrária, sem recuos e sem distorções, atendida a advertência do Concílio Vaticano II: ‘Deus destinou a terra e tudo o que nela existe ao uso de todos os homens e todos os povos, de modo que os bens da criação afluam com equidade às mãos de todos, segundo as regras da justiça, inseparável da caridade."

Antes de entrar na análise desse texto, julgo necessário acentuar que, ao fazê-la, não me influencia o mais leve sentimento partidário. Sabem os meus leitores que, na Constituinte Federal de 1934, representei uma entidade tipicamente extrapartidária, como seja a Liga Eleitoral Católica. De então para cá, não aceitei a inclusão de meu nome em qualquer partido político. Falo, pois, sem qualquer preconceito favorável ou contrário ao MDB.

* * *

No texto que citei, parece-me presente o academismo que, de pai para filho, e de filho para neto, o Partido Democrático comunicou a toda a sua descendência política, isto é, o Partido Constitucionalista, a UDN e o MDB.

Antes de tudo, é de se notar, neste sentido, a correção impecável, e, quase diria, um pouco aristocrática, da forma tanto do item 11 quanto de toda a declaração de princípios. Eu o assinalo com prazer, nestes dias em que a vulgaridade da linguagem e das atitudes se vai tornando sempre mais freqüente.

Paradoxalmente, chamou-me a atenção a ênfase, um tanto demagógica, da adjetivação. O MDB quer uma reforma agrária, e a quer "imediata", "profunda", "sem recuos e sem distorções". Tem-se a sensação de que toda esta sobrecarga de qualificativos obedece ao propósito de apostar com o governo uma corrida para a conquista das massas agro-reformistas. O MDB exige, assim, para já e com profundidade, uma reforma que o poder público — segundo ele parece insinuar — estaria fazendo aos poucos e com um tal ou qual comedimento.

Elegância de forma e demagogismo ingênuo de conteúdo são duas características do academismo. Falei de ingenuidade, e com razão. Pois, no caso, ela está bem presente. Os espíritos acadêmicos, nas quatro paredes de seu gabinete, imaginam as massas sempre sedentas de reformas. E nisto se enganam freqüentemente. — No caso concreto, onde estão as multidões agro-reformistas que o MDB tão sofregamente quer seduzir? — Nosso homem do campo é ordeiro e bom. Jango, com uma força de propulsão para a esquerda muito mais autêntica e possante do que a do MDB, não conseguiu mover à revolta o operariado rural. E o confessou em discurso alguns dias antes de sua queda. D. Helder é sem dúvida dotado, senão de eloquência, pelo menos de artes cênicas mais eficazes para a demagogia do que o academismo dos dirigentes do MDB. E também ele não o conseguiu. Disto a TFP tem prova provada. De meados de julho a princípios de setembro do ano passado, uma de nossas caravanas percorreu de norte a sul a zona canavieira de Pernambuco, fazendo propaganda de publicações nossas. Misturou-se ela inteiramente com a população das cidades e povoados, e foi por toda parte muito bem acolhida, realizando sessões em salas superlotadas. Isto até mesmo na cidade do Cabo, do pe. Melo, por muitos considerada reduto esquerdista impenetrável. As afirmações que aqui faço não são palavras no ar. A TFP possui um audiovisual dessa caravana, que documenta a veracidade do que assevero. Esse audiovisual está à disposição de todos os interessados...

Concluo. Há pois uma ingenuidade toda acadêmica nos senhores do MDB, ao imaginarem que as massas rurais revoltas existem, e que sentenças bem buriladas e enfáticas, sobre reforma agrária, as possam lançar à luta com maior êxito do que Jango e d. Helder.

A meu ver, a conseqüência tática da atitude agro-reformista ribombante do MDB é bem outra do que esperam seus mentores. Ela afastará do partido muitos fazendeiros. Não vejo que lhe ganhe muitos trabalhadores. Males do academismo...

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O item 11 apresenta, entretanto, outro aspecto importante, e este digno de todo o encômio. A fim de justificar sua posição agro-reformista, o MDB cita o Concílio Vaticano II. E com isto reconhece a transcendência do aspecto religioso e moral na questão agrária.

Há, com efeito, sobretudo nas cúpulas das classes produtoras, não poucas pessoas que, ao discorrer sobre a reforma agrária, o fazem "sapamente", isto é, em termos meramente econômicos, como se a Religião e a Moral nada tivessem que ver com o assunto. Ora, o povo brasileiro tem sua consciência jurídica e moral formada segundo o imutável princípio cristão de que toda desapropriação deve ser feita mediante uma indenização correspondente ao preço real do bem expropriado. O agro-reformismo quer que a indenização se faça a preço marcadamente inferior, e pago com títulos públicos de um valor absolutamente incerto. A reforma agrária assim entendida cria, pois, para nosso povo fundamentalmente católico, um trauma moral e religiosos inegável. É o que "per longum et latum" ficou provado no livro "Reforma Agrária — Questão de Consciência", do qual sou um dos autores.

Fazer a reforma agrária abstraindo deste trauma não importa em o eliminar, mas em criar no país um mal-estar profundo. E este mal-estar se irá agravando, à medida que a desapropriação de terras pertencentes a particulares (e excluo assim a justa e oportuna desapropriação, pela União, de terras pertencentes a Estados ou municípios) se for tornando mais freqüente.

Tudo isto, sentiu-o o MDB. E tentou resolver o problema de frente, tomando em consideração o seu aspecto religioso e moral. Nisto, inegavelmente, andou bem.

Mas a este elogio devo, desde logo, somar uma crítica. É que o texto do Concílio Vaticano II, citado no item 11, por si só não demonstra a legitimidade de uma reforma agrária. — Com efeito, onde a prova de que "in concreto", no Brasil, o atual regime agrário não produz — na medida do possível — a afluência eqüitativa dos bens da criação em mãos de todos? E onde a prova de que a reforma agrária melhoraria a difusão da riqueza? — Ora, sem tal prova, nada feito...

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Antes de prosseguir, importa acentuar que minha objeção quanto ao modo de calcular e pagar o preço dos imóveis rurais, preconizado pelos agro-reformistas, não é a única. Para desapropriar alguém do que lhe pertence, é preciso que haja uma utilidade pública ou social comprovada. — Ora, onde a demonstração de que as desapropriações agro-reformistas são necessárias ou úteis ao País? — Esta prova, até agora, não foi feita. Pois ninguém demonstrou que dividir terras lhes aumenta necessariamente a produção. Antes, há vários argumentos em sentido contrário. De onde a iliceidade da reforma agrária me parece certa.

* * *

Mas, perguntará algum leitor, por que essas objeções se voltam apenas para a reforma agrária proposta pelo MDB? E a do governo?

Distingo. Enquanto esta última importa em promover a colonização de terras públicas inaproveitadas, tem todo o meu aplauso. Ela é útil, mais do que isto, necessária e urgente. Enquanto ela importa em desapropriar imóveis particulares sem comprovada necessidade, e sem indenização correspondente ao preço real, estou em desacordo.

E estou em desacordo tranqüilamente, pois sei que — ao contrário do que d. Helder tem assoalhado no exterior — o governo brasileiro reconhece a liberdade da crítica respeitosa, e formulada segundo os ditames da lei. Máxime quando se funda em razões de índole religiosa.


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