Folha de S. Paulo,
25 de
abril de 1971
Corcovado ou formiga?
Rio de
Janeiro: Dominando o Corcovado (visto da Urca), a estátua do Cristo
Redentor
De
si, o casamento é um contrato pelo qual os cônjuges se unem tendo em
vista a perpetuação da espécie, à educação dos filhos e o mútuo auxílio
nas necessidades da vida.
Esse
contrato é indissolúvel por natureza. Pois nenhuma de suas nobilíssimas
finalidades pode ser adequadamente alcançada se ficar ao arbítrio dos
cônjuges dissolvê-lo.
Nosso
Senhor Jesus Cristo, a fim de realçar a dignidade do contrato
matrimonial, e de lhe acrescer a estabilidade, elevou-o à dignidade de
sacramento. Assim, fechou Ele, para todos os homens e para todo o
sempre, o caminho para o divórcio.
Em
conseqüência do seu duplo caráter sacral e indissolúvel, o matrimônio
cristão dotou a instituição da família de uma estabilidade e de uma
pujança que a distinguiram, de modo excelente, da família pagã, ligada
às superstições idolátricas, maculada pela prática da poligamia e
debilitada pela instabilidade inerente ao divórcio.
Sendo
a família a base da sociedade, é fácil avaliar quanto se beneficiou,
assim, com a sacralidade e a indissolubilidade do matrimônio, todo o
corpo social. Um dos principais fatores pelos quais a civilização cristã
se elevou de muito sobre todas as outras modalidades de matrimônio e
família.
Nisto
devemos ver um dom magnífico de Nosso Senhor Jesus Cristo — o
instituidor do sacramento do matrimônio — para os indivíduos e as nações
em todos os séculos vindouros. Um dom que é espelho de sua sabedoria
infinita e fruto de Sua bondade sem limites.
O que
acabo de dizer não é apenas pensamento meu. É o que sobre o matrimônio e
a família tem ensinado, com inquebrantável constância, a Santa Igreja
Católica. E isto desde seus primeiros dias até a época presente, e até o
fim do mundo. É a doutrina sagrada e intocável que nenhum católico pode
negar sem se pôr "ipso facto" fora da Igreja. Pois o caráter sacramental
e a indissolubilidade do matrimônio foram definidos pelo Concílio de
Trento.
Tudo
isto, que a mim, como a toda alma católica, entusiasma e encanta, ao sr.
Nelson
Carneiro parece defeituoso e digno de reforma.
Não
sei bem que idéia faz sobre Nosso Senhor Jesus Cristo o senador eleito,
por um triste lapso, com o apoio de centenas de milhares de votos
católicos da Guanabara, enquanto tantos sacerdotes se absorviam em seus
afazeres imediatos, se entregavam à torcida esportiva, ou se dedicavam a
acirrar a luta de classes. Mas o certo é que, para o sr. Nelson
Carneiro, a obra do Homem-Deus parece coxa, e precisa de urgentes
reparos.
E
assim, no afã de corrigir a Nosso Senhor Jesus Cristo, acaba ele de
pedir o concurso do Senado para a introdução do divórcio no País.
Não
faltou quem lhe batesse palmas. Em todos os setores da opinião pública
desejosos de contestar, desorganizar e relaxar tudo — de demolir, em uma
palavra — a iniciativa do desenvolto divorcista despertou esperanças e
júbilo. Prova indireta, mas quão eloqüente, de que o divórcio é
realmente demolidor!
Tudo
é possível em nossos dias. Se pôde suceder que um candidato
barulhentamente divorcista tenha sido eleito por um povo católico e "ipso
facto" antidivorcista, não será tanto de espantar que um projeto
instituindo o divórcio seja aprovado por senadores e deputados
católicos, que representam no Congresso o País de maior população
católica na terra.
A meu
ver, entretanto, as possibilidades de êxito do divórcio são mínimas. Em
outros termos, tal é a influência moral da religião em nosso País, que
tudo está nas mãos do clero. Se ele falar logo, falar claro, falar alto,
falar coeso, e sem cessar, a consciência católica do País — povo e
legisladores — despertará do triste e explicável letargo em que está.
Será então impossível ao sr. Nelson Carneiro fazer passar o divórcio,
como é impossível a uma formiga derrubar o Corcovado.
--
Fa-lo-á o clero? — Alguns fatos recentes depõem em prol da afirmativa.
Consta-me que o cardeal Scherer, arcebispo de Porto Alegre, já emitiu um
pronunciamento contra o projeto Nelson Carneiro. O mesmo fez d. Lucas
Neves, bispo auxiliar de São Paulo. Li uma entrevista de Mons. Tapajós,
diretor do Instituto de Previdência do Clero, também contra o projeto.
Li-o em "O Estado de S. Paulo", e gostei. Nem outra coisa poderia eu
esperar de um sacerdote que por sua inteligência bem mereceria destaque
maior do que lhe tem sido dado (e sou insuspeito ao dizê-lo, pois
discordamos em muitos pontos). Há na entrevista de Mons. Tapajós, é
verdade, uma imprecisão de monta. Mas que, a meu ver, obviamente se deve
atribuir a um lapso do "Estado".
Espero que pronunciamentos como estes se vão multiplicando e se
transformem num verdadeiro coro. Espero ver entrar em liça, antes de
tudo, a CNBB. E tenho motivos para esperá-lo porque o secretário da
entidade, d. Ivo Lorscheiter, prometeu à imprensa que ela se
pronunciaria até o dia 28 deste mês. Espero ver, em seguida, entrarem na
arena, em linda emulação, e com zelo e vigor, todas as entidades e
personalidades católicas.
Há
muitos assuntos em que estão divididos os católicos. Neste, parece não
estar havendo divisão. E há razões para augurar que não haja omissões.
Qualquer voz que deixe de se erguer, qualquer dissensão que se forme,
importará necessariamente em um escândalo e uma vergonha.
--
Bem, Dr. Plinio, o sr. afirma que todo o Brasil é católico e "ipso facto"
antidivorcista. O empenho e a pressa com que o sr. pede estas tomadas de
atitude não parecem provar que o sr. não confia em sua própria
afirmação, e teme a vitória do divórcio? É o que talvez pergunte algum
leitor. — Respondo de antemão.
A
opinião pública está desnorteada e cambaleante, com toda a zoeira do
caos contemporâneo. E isto a leva a alternativas de sobreexcitação e de
letargia. Especialmente a opinião católica está aturdida e exausta. Tão
exausta que muito mais propende para o desacoroçoamento e a letargia, do
que para a excitação. E não dá para menos. Basta pensar na audiência
concedida pelo Papa Paulo VI a moças "trajando" "shorts" dos mais
exíguos.
Animar, coordenar e levar à luta nossas tão imensas e tão desditosas
multidões de católicos do Brasil, é obra que só um grande trabalho
poderá levar a cabo. Se tal trabalho for feito a fundo, a vitória desde
já é certa. O sr. Nelson Carneiro será a formiga, e a maioria católica o
Corcovado. Se, pelo contrário, tal trabalho não tiver a amplitude e o
vigor que as circunstâncias exigem, o divorcismo será o Corcovado e nós,
a quase totalidade do Brasil, seremos... a formiga.
Em
suma, tudo depende da CNBB. Desde que ela se atire à luta, vencerá com
certeza.
Os
fatos levam a crer que ela já optou pelo papel do Corcovado.
O sr.
Nelson Carneiro, político experiente e de mil recursos, parece já ter
percebido as dificuldades que lhe estão surgindo pelo caminho. É
provavelmente por isto que, na justificação de motivos de seu projeto,
ele faz um farfalhante elogio à CNBB, convidando-a implicitamente para
uma barganha. Isto é, para a aceitação de uma fórmula conciliatória.
--
Qual poderia ser esta? — Já a tem em mira, por certo, o ágil político.
Será algum "divorcinho" a ser proposto à opinião católica sob pretexto
de evitar mal maior, ou seja, a aprovação do "divorcião" pedido pelo sr.
Nelson Carneiro. — O que pensar desta hipótese?
É que
ela é totalmente inaceitável. Uma influência moral imensa, como a da
Igreja, não pode ser acuada a hipóteses derrotistas desta natureza. Nas
nossas condições, qualquer meio termo é impossível. Só há para a CNBB
dois papeis, o de Corcovado e o de formiga.