Folha de S. Paulo,
4 de
abril de 1971
O
coelho
Dos
três princípios afirmados no nome da TFP — Tradição, Família e
Propriedade — só é contestado com certa insistência o terceiro, isto é a
propriedade. A contestação procede antes de tudo — como é natural — das
correntes socialistas e comunistas, que negam a propriedade individual.
Contudo, também em certos setores empresariais e em alguns grupos
católicos, surge ela de quando em vez. E isto é muito menos natural.
Com
efeito, o empresario é, por definição, um proprietário. E não se
compreende como possa alguém estar cômoda e opulentamente aboletado na
situação de proprietário... e, ao mesmo tempo, ser contra a propriedade.
Tal contradição se parece com a de um monarca que fosse republicano, ou
um presidente da república o qual se afirmasse anarquista. Em tais
hipóteses, seria clamoroso que o monarca não abdicasse sua coroa, ou o
presidente não renunciasse à chefia do Estado. Não é menos clamoroso que
o proprietário não renuncie a seus bens. Em favor de obras de caridade,
por exemplo.
O
caso dos católicos contrários à propriedade privada também é
estranhíssimo. Em primeiro lugar porque, em muitos deles a animadversão
em relação à propriedade privada mais transparece do que aparece. Ou
seja, mais ela filtra através de insinuações, de críticas veladas, de
inesperadas conivências com a esquerda, do que se afirma de modo
peremptório. — Por que este mistério? Se são a favor dela, por que
jamais a defendem? Por que suas simpatias correm sempre para os que a
atacam? E por que suas antipatias se voltam unicamente contra os que a
defendem?
Há,
cumpre dizê-lo, católicos que vão mais longe, e afirmam, às escâncaras,
que a Igreja está inteiramente desvinculada, em nossos dias, do
instituto da propriedade privada. Afirmam eles que o comunismo, enquanto
regime social e econômico é tão aceitável pela Igreja quanto outro
qualquer. E que a única razão dos conflitos ocorridos até aqui, entre a
Igreja e o comunismo, provém do fato de que este último tem perseguido a
Religião. Cessadas as perseguições, a Igreja aceitará de viver em
inteira harmonia com os Estados comunistas. Como até há pouco viveu
placidamente no Estado capitalista, antes da Revolução Francesa se
sentiu à vontade no Estado monárquico-centralista, e ainda mais
remotamente , isto é, na Idade Média, cooperou intimamente com o Estado
feudal. Ora, também a posição destes católicos esquerdistas é
desconcertante. Pois propriedade individual — com estas ou aquelas
modificações acidentais — é apontada pelos documentos pontifícios como
uma instituição decorrente da própria ordem natural das coisas, no que
esta tem de fixo e invariável. Como uma instituição legítima, portanto,
e que deve durar enquanto o mundo for mundo. Como um direito sagrado,
decorrente para o homem do fato de ser homem. Um direito, pois, que
nenhum Estado pode abolir sem entrar em frontal e gravíssimo conflito
com a moral católica.
Por
isto mesmo, mais estranhável ainda é que certos católicos qualifiquem a
propriedade individual como uma injustiça dos outros tempos, que a
Igreja teve a fraqueza de apoiar, mas da qual deve dessolidarizar-se, a
esta altura da evolução humana. Porventura foi, então, uma fraqueza de
Deus afirmar a propriedade individual em dois mandamentos do decálogo,
"não furtarás" e "não cobiçarás os bens do próximo"? E foi uma fraqueza
de Nosso Senhor Jesus Cristo corroborar o decálogo para todo o sempre,
afirmando que "enquanto não passar o céu e a terra, não desaparecerá da
lei um só jota ou um só til" (S. Mateus, V, 18)?
O
mais curioso é que entre este "antiproprietismo" patronal e seu
congênere "católico" há convergências profundas.
Os
empresários "antiproprietistas" procuram justificar sua atitude em
termos de encíclicas. E os católicos "antiproprietistas" em termos de
economia.
Uns e
outros parecem pensar que o mundo caminha para uma situação esotérica
que eles já conhecem, porém ainda não ousam revelar-nos. Essa situação
não seria idêntica ao comunismo, porém incluiria a abolição da
propriedade individual. Isto é, concluímos nós, seria genuinamente
comunista.
Que
coelho está para sair das mangas ou do bolso do colete desses
enigmáticos prestidigitadores?
* * *
Nada
de bom auguramos desse coelho. Todo o mistério que se faz antes de o
mostrar, afinal, à admiração dos povos, só pode despertar suspeitas.
Já
antes de ele aparecer na cena, o coelho se nos prenuncia portador de
calamidades. É preciso, pois, fazer o possível para obrigar o coelho a
continuar na manga ou no bolso dos prestidigitadores.
Para
tanto, nada melhor do que citar alguns ensinamentos pontifícios sobre a
propriedade privada. A um tempo desconcerta os empresários e silencia os
católicos da grei "antiproprietista".
* * *
E
para que não se diga que esses ensinamentos são obsoletos (o que é um
ensinamento pontifício obsoleto?), começo desde logo por um texto de
João XXIII:
João
XXIII: "...o direito de propriedade privada, mesmo em relação a bens
empregados na produção, vale para todos os tempos. Pois depende da
própria natureza das coisas, que nos diz ser o indivíduo anterior à
sociedade civil, e, por este motivo, ter a sociedade civil por
finalidade o homem. De resto, a nenhum indivíduo se reconheceria o
direito de agir livremente em matéria econômica se não lhe fosse
igualmente concedida a faculdade de escolher e de empregar os meios
necessários ao exercício deste direito. Além disto, a experiência e a
História atestam que, onde os regimes políticos não reconhecem aos
particulares a posse mesmo de bens de produção, aí é violado ou
completamente destruído o uso da liberdade humana em questões
fundamentais. De onde se patenteia, certamente, que a liberdade encontra
no direito de propriedade proteção e incentivo" (Encíclica "Mater et
Magistra", A. A. S. Vol. LIII, pág. 427).
Por
ele se vê a legitimidade e a perenidade do regime de propriedade
privada. E se prova, com uma luminosa simplicidade, como a supressão da
propriedade privada importa na mais completa tirania.
No
próximo artigo, fornecerei ao leitor outras citações.