Folha de S. Paulo,
28 de
março de 1971
Perplexidade que agride
Do
diário "La Nación", de Buenos Aires, de 6 do corrente, transcrevo,
traduzido para nosso idioma, o texto de um telegrama endereçado pelo
papa Paulo VI ao camarada Salvador Allende, presidente do Chile:
"Correspondemos, com viva gratidão, à atenciosa saudação de Vossa
Excelência, a Nós dirigida em nome próprio, bem como do governo e povo
chilenos, por ocasião da Jornada da Paz, e ao mesmo tempo formulamos
votos fervorosos de cristã prosperidade para essa amadíssima nação".
Li
essa mensagem com o devido respeito. Sem embargo, confesso que ela me
causou certa perplexidade. Nada mais justo do que os "fervorosos votos
de cristã prosperidade" do chefe da Igreja para a nação chilena. Mas —
perguntei-me — o que fazem esses votos no telegrama por ele dirigido a
Allende? — Com efeito, o novo chefe de Estado subiu ao poder com um
programa marxista, e o vai aplicando com implacável determinação. Ora,
pelo próprio fato de ser marxista, tal programa não pode trazer ao Chile
qualquer grau ou forma de prosperidade. E menos ainda de prosperidade
cristã. É o que se deduz do ensinamento tradicional dos romanos
pontífices. Assim, esperar que o Chile alcance a "cristã prosperidade"
sob o governo de Allende, parece impossível.
Isto
posto, os votos de "cristã prosperidade" do soberano pontífice só
poderiam significar a esperança de que Allende mudasse inteiramente de
rumo, ou deixasse o poder.
Tentei, então, interpretar a esta luz o telegrama, substituindo nele,
"ad experimentum", as palavras "cristã prosperidade" por outras,
consentâneas com minha hipotética interpretação. Eis o resultado que
obtive: "...ao mesmo tempo, formulamos votos fervorosos de uma inteira
mudança de rumos para nossa amadíssima nação". E estarreci. Não pode
ser! Esses votos tomariam um tom agressivo que de modo nenhum se casa
com o contexto tão cordial do telegrama. Menos satisfatório ainda foi o
resultado da segunda substituição que tentei: "...ao mesmo tempo,
formulamos votos fervorosos de que V. Excia. deixe o poder"!
Então, se essas duas interpretações são absurdas, como explicar os
"votos fervorosos" de Paulo VI? — Fiquei sem saber...
* * *
Mera
fórmula de gentileza, que não pode ser tomada inteiramente a sério,
objetará algum leitor, à guisa de explicação. — Não estou de acordo.
Pois, dado o caráter sagrado da missão conferida por Nosso Senhor Jesus
Cristo ao sucessor de Pedro, nenhuma palavra saída de seus lábios ou de
sua pena, no exercício das atribuições do sumo pontificado, é para não
ser tomada inteiramente a sério. Ora, quando um papa se dirige
oficialmente a um chefe de Estado exerce inegavelmente uma atividade
inerente ao munus pontifício.
E
daí, insisto, minha reverente mas inevitável perplexidade.
* * *
Perplexidade ainda bem maior senti ao ler, no órgão oficioso da
arquidiocese de Santiago do Chile, "La Revista Católica" (n.º 1015,
setembro-dezembro de 1970), a seguinte informação, que também transcrevo
traduzida: "O novo núncio foi recebido no dia 19 de novembro pelo
presidente da República, Salvador Allende, a quem apresentou as cartas
que o acreditam como representante do papa.
"Depois de uma cordial troca de saudações entre o núncio e o presidente,
mantiveram ambos uma conversa privada.
"Em
seu breve discurso, Mons. Sotero Sanz, depois de transmitir a saudação e
os votos do Santo Padre tanto para a pessoa do presidente como para o
povo chileno, recordou o clima de colaboração que sempre presidiu as
relações entre a Igreja e o governo do Chile".
Citei
toda esta passagem apenas para enquadrar em seu contexto as frases
seguintes, que são as mais interessantes: o novo núncio "acentuou
especialmente sua complacência pelo programa de progresso social em que
está comprometido o país, para o qual assegurou a ajuda da Igreja,
recordando as iniciativas que esta tomou em ordem à promoção social,
especialmente mediante a criação da comissão "Justitia et Pax" no seio
da Cúria Romana e o "Fundo Populorum Progressio".
Antes
de tudo, caro leitor, detenho-me um pouco para lhe permitir que tome
fôlego. É bem justo, pois surpresa e perplexidade são sensações que
encurtam a respiração.
* * *
Isto
feito, vamos à análise do texto. O programa com o qual "está
comprometido o país" chileno, todos o sabemos: é um programa marxista.
Como pode pois tal programa ter a "complacência" do representante do
papa? Como, sobretudo, pode este "assegurar a ajuda da Igreja" à
execução desse programa? Como pode afirmar que a atuação da comissão
pontifícia "Justitia et Pax" e o Fundo "Populorum Progressio" estão em
consonância com a aplicação dos planos do comunista Allende?
* * *
Que
comentários agressivos, estes, talvez me objete alguém. — Respondo que
não. À vista de tais textos, o agredido sou eu. Agredido, sim, porque
eles me criam, a mim, católico, apostólico, romano, um problema muito
sério. E este problema — à maneira da esfinge — ou eu resolvo, ou ele me
devora.
Com
efeito, adiro de fundo da alma, em todos os graus, modos e medidas
preceituados pelo Direito Canônico, aos ensinamentos pontifícios. E o
discurso do núncio me coloca em uma alternativa: entendi mal aqueles
augustos ensinamentos, ou não há coerência entre eles e as palavras do
representante de Paulo VI em Santiago?
A
resposta a estas perguntas é indispensável para o católico, mais ainda
do que o ar para os pulmões ou a luz para os olhos. Se eu me mantivesse
indiferente em relação a elas, seria indiferente à minha própria fé.
Desta
perplexidade não sairei, se não olhar bem de frente a questão. E dela
não sairão também incontáveis leitores, se por sua vez não fizerem o
mesmo.
É
para auxiliar na solução de questões tão agressivas, que escrevo.
* * *
Um
núncio apostólico representa oficialmente o chefe da Igreja, nas
relações com o governo junto ao qual está acreditado. Os documentos —
cartas, discursos etc. — dirigidos pelo núncio ao governo, têm um
caráter diplomático, porém não constituem, de si, normalmente, atos
oficiais do magistério da Igreja. Ainda que o fossem, sendo o núncio um
mero delegado do papa, se há algum desacordo entre conceitos emitidos
por ele e o ensinamento dos romanos pontífices, prevalecem estes
últimos. O representante é, obviamente, menos do que o representado.
Assim, por mais que o núncio em Santiago aplauda o programa marxista de
Allende e prometa seu apoio a este, nós, católicos, devemos continuar
inabaláveis na fidelidade aos incontáveis documentos pontifícios que
condenam o comunismo.
Mas,
perguntará alguém, e o telegrama do Papa a Allende? Não constitui um ato
do magistério? — Evidentemente não. E dê-se-lhe esta ou aquela
interpretação — esse telegrama não tem, nem segundo as intenções do
Papa, nem segundo as leis da Igreja, eficácia jurídica suficiente para
revogar qualquer documento do magistério supremo. É o de que nenhum
canonista pode duvidar.
* * *
Por
análogas razões, não me abalam, e nem devem abalar a ninguém, os elogios
que o órgão oficioso da Santa Sé, o "Osservatore Romano", dispensou
prodigamente, por duas vezes sucessivas, a d. Helder. Mas esta é outra
história, de que falarei depois.
Para
hoje ainda tenho um pequeno assunto a tratar. E é com d. Mário Gurgel,
ex-bispo auxiliar do falecido cardeal Câmara. Deu esse prelado — cuja
inteligência e cultura me alegro em reconhecer — uma entrevista à
imprensa sobre vários assuntos, entre os quais a TFP. No tocante à nossa
entidade, as palavras de d. Mário Gurgel foram muito diversamente
reproduzidas pela imprensa. A "Folha de S. Paulo" atribuiu ao
entrevistado apenas estas palavras: "os demais jornais católicos e as
entidades que agem nos moldes da TFP também não refletem a posição da
Igreja porque são particulares".
É
esta uma afirmação perfeitamente verdadeira. — É suficiente?
Imagine d. Mário Gurgel que eu saia a público para dizer que ele não
pode falar em nome da TFP. Não terei dito senão a mais pura verdade. Mas
terei insinuado, ao mesmo tempo, uma inverdade, isto é, de que ele, em
certa ocasião, falou em nome da TFP. O que jamais sucedeu. Eu me
sentiria, pois, mal com minha consciência, se feita essa declaração, não
tivesse acrescentado, desde logo, que d. Gurgel aliás jamais pretendeu
falar em nosso nome.
A
consciência do culto e inteligente bispo não lhe pedirá algo de análogo
em relação à TFP?