Folha de S. Paulo,
21 de
março de 1971
Fel e
prudência
Estremeci ao ler na imprensa a réplica do órgão informativo da
Arquidiocese "Ecclesia", à aula inaugural do general Souza Melo no CPOR.
Sim,
a nota me causou susto. Não, porém, pelo general, mas pela Igreja.
Com
efeito, pode-se concordar com o general, ou discordar dele. O que não se
pode é negar que a sua aula inaugural possui os requisitos de um
documento de boa lei, do ponto de vista intelectual. É clara, bem
concatenada, substanciosa e objetiva. Caso "Ecclesia" quisesse refutar o
general, deveria fazê-lo num tonus intelectual do mesmo nível, ou ainda
mais elevado. É o que prescrevem as leis fundamentais da boa polêmica.
E, mais ainda, é o que exige o respeito devido pelo boletim, à
Arquidiocese que têm a honra de representar.
Ora,
a nota dada a lume por "Ecclesia", naquela ocasião, não correspondia a
nada disto. Faltava-lhe valor na argumentação, elevação na linguagem,
método na exposição. Não impressionava, nem convencia; dava pena. E por
isto foi que estremeci. Explico-me.
Concordo com o general. Estou em posição oposta à de "Ecclesia". Mas meu
amor à Igreja me levava a esperar que o órgão da Arquidiocese se
apresentasse com garbo na liça. Pois este era o velho e glorioso padrão
eclesiástico de outrora. Aconteceu precisamente o contrário. E quando
percebi que mais este padrão se rompera, sobressaltei: até onde iremos,
nessa lúgubre sucessão de quebras de padrão?
* * *
Depois, não voltei a pensar no assunto. Confesso, entretanto, que tive
um estremecimento a mais, ao ler uma nova nota de "Ecclesia". Desta vez
contra o artigo que publiquei nesta coluna sob o título de "Faça uma
experiência, leitor". A quebra de padrão fora ainda mais completa do que
na réplica ao general. Chegara ao desconcertante. A réplica de "Ecclesia"
apesar de todo o fel que ressuma, é tão inofensiva, que não tenho dúvida
em a transcrever na íntegra. Julgue o leitor:
"Ao
sr. Plinio C. de Oliveira. ‘Faça uma experiência, Leitor’ é o título do
artigo, que o sr. Plinio Correia de Oliveira assumiu (sic) na ‘Folha de
S. Paulo’ do dia 7 de março, à página 52, contra o Centro de Informações
Ecclesia e um seu editorial.
"As
expressões que o professor universitário usa, aqui e ali, desdizem tanto
de sua classe, que nos parecem desmerecer tudo quanto diz. Acresce,
entretanto, que ele desfere golpes na própria fantasia. Com efeito,
interpreta a seu modo, o que dissemos do comunismo, sistema
‘economicamente discutível’, e passa a combater o que não afirmamos.
"Seria inútil travar uma polêmica a respeito do referido artigo. Ela
traria proveito apenas para o próprio sr. Plinio C. de Oliveira e o seu
moinho. Nestes últimos anos ele já demonstrou que não deseja ver certas
coisas muito simples e, doutra parte, vê demais. Melhor será remetê-lo,
para entender nosso editorial ‘A Fala do General’, ao que divulgamos no
Boletim Informativo n.º 40, do nosso Centro de Informações Ecclesia,
publicado, também, à pág. 1 da edição de ‘O São Paulo’ de 13-3-71. Cgo.
Amaury Castanho, Diretor".
* * *
Não
dá pena? — Fugir, de si, já é triste. Mais triste ainda é fugir com
tanta falta de tino e de agilidade.
Acusa-me, por exemplo, "Ecclesia", de haver interpretado mal o que o seu
boletim dissera. Ora, afirmar que minha interpretação foi errada é
fácil. Difícil é provar que de fato o foi. — Onde, na réplica de "Ecclesia",
a prova? — Disto se esquiva, muito cautelosamente, o boletim. E disfarça
a retirada remetendo o leitor ao Boletim Informativo n.º 40, também
perfeitamente evasivo.
Logo
adiante, "Ecclesia" explica, com candura, porque foge assim à discussão
é que "ela traria proveito apenas para o próprio sr. Plinio C. de
Oliveira". Claro está que o proveito seria todo de "Ecclesia" se, por
meio de uma boa argumentação, me pudesse derrotar...
No
fim, depois de ter fugido prudentemente à discussão "Ecclesia", cheia de
fel, solta um desaforo. Segundo o boletim, eu não costumo estar de boa
fé no que escrevo, pois "não desejo ver coisas muito simples e, doutra
parte, vejo demais". — Quais as "coisas simples" que não quero ver?
Quais as coisas a respeito das quais "vejo demais"? — Mais uma vez, "Ecclesia"
se esquiva cautelosamente de o dizer. Atira a pedra e sai correndo.
Porque entrar no mérito das questões sobre as quais dissentimos,
discutir fatos, apresentar argumentos, confessadamente, não lhe parece
prudente.
Quanto à parte literária da nota, não é melhor do que a dialética. A
figura dos "golpes na própria fantasia" é vesga e desengraçada. A
referência ao meu "moinho", obscura. — que trambolho de moinho é este? E
que história é esta de "proveito" para meu moinho? Suposto que eu
tivesse um moinho, no que consistiria esse "proveito"? — Provavelmente,
quando o autor da nota quis escrever "água", escreveu "proveito". Terá
sido uma distração. Ele estava pensando em algum proveito enquanto
escrevia. Seja como for, o lapso não fala a favor dos dotes literários
do autor da nota.
* * *
Lancemos agora um olhar sobre o tal Boletim Informativo n.º 40.
Traz
ele o título "Por um amanhã melhor". Um de seus objetivos é refutar os
que censuram "Ecclesia" por desejar "uma nova ordem social, política e
econômica, mais humana e mais cristã". E, em conseqüência, passa a se
defender dessa acusação.
Na
realidade, ninguém acusa "Ecclesia" por essa razão, a menos que eu
saiba. Pois quem há de querer que a ordem social vigente não progrida no
sentido humano e cristão? Até comunistas há que afirmam desejar esse
progresso humano e cristão, o qual, segundo eles, coincide com o
marxismo. "Ecclesia", pois, não tem do que se defender a tal respeito.
Quanto a mim, sustentei, a respeito de "Ecclesia", coisa diversa, isto
é, que o seu boletim tomara uma posição muito suspeita em matéria de
propriedade privada. Uma posição que tende para a aceitação da
comunidade de bens, ou seja, do comunismo. A entidade tentou, então,
responder-me no seu boletim n.º 40.
Vejamos agora, como se defende "Ecclesia".
Diz-se ela solidária com uma "solução social eqüidistante tanto do
capitalismo quanto do comunismo". No que consiste entretanto, essa
solução intermediária? Só se defenderia "Ecclesia" eficazmente de minha
suspeita: 1) descrevendo clara e pormenorizadamente seu programa a esse
respeito; 2) demonstrando que ele nada tem de socialista nem de
comunista.
Mas,
sempre resvaladia, "Ecclesia" evita seguir este caminho e envereda por
outra escapatória. Põe-se a provar que não nega "qualquer valor a muitas
estruturas e instituições de nossa atual ordem social, política ou
econômica". O que é coisa bem diversa. E assim, mais uma vez, ela não se
defende do que foi acusada e procura defender-se do que não foi acusada.
Continua o texto com generalidades e lugares comuns, até tratar de
propriedade privada. É o ponto álgido da questão. — "Ecclesia" aceita
como compatível com a doutrina católica a comunidade de bens? Qual a sua
resposta? — "admitimos a legitimidade da propriedade privada", diz ela.
Até aí, respondemos, morreu Neves. Há dois mil anos que a Igreja admite
isto. Mas admitir a legitimidade da propriedade privada não importa
necessariamente em afirmar que o regime oposto, isto é, o comunista,
seja ilícito. Pois pode alguém considerar lícito tanto um regime como
outro. Disto é que "Ecclesia" foi acusada. E a este respeito, como se
vê, ela foge de qualquer definição. Em suma, aqui, também, "Ecclesia"
foge.
* * *
Só
tive, com o arcebispo d. Paulo Evaristo Arns, um encontro. Foi longo,
substancioso, cordial. Lembrando-me da atmosfera simpática que marcou
aquele diálogo, sinto-me animado a dirigir, destas colunas, um apelo ao
pastor da grei paulopolitana. Peço-lhe, assim, que abra uma investigação
para saber quem foi o autor da nota de "Ecclesia" que comentei acima.
Vem ela assinada pelo cônego Amaury Castanho. Não conheço esse
sacerdote. Mas o autor verdadeiro deve ser outro. Pois, mesmo em nossos
dias, o nível intelectual de um cônego não pode ser este. Com certeza,
emprestou o cônego Amaury seu nome a algum colaborador canhestro.
Descoberto o autor, proponho que o arcebispo o dispense do manuseio da
pena. Pois tudo leva a crer que ele seja também o autor da pobre réplica
ao general e do boletim n.º 40. E que esteja pronto para outras do
gênero. Temo que, assim, o órgão noticioso da arquidiocese baixe de
nível a perder de vista, com desdouro para a ilustre instituição que
representa.