Folha de S. Paulo,
7 de
março de 1971
Faça uma experiência,
leitor
Interessou vivamente ao público, a controvérsia entre o general Humberto
de Souza Mello, comandante do II Exército, e o arcebispo de São Paulo.
Como se sabe, por ocasião da abertura do presente ano letivo no CPOR,
aquela alta autoridade militar proferiu um discurso em que verberou a
atuação do clero esquerdista. Dias depois, uma nota do Centro de
Informações "Ecclesia", órgão oficial da arquidiocese, veio a lume para
refutar as assertivas do ilustre militar. Ambos os documentos, o do
general e o de "Ecclesia", pedem um comentário. É o que, de minha parte,
ofereço aos leitores no presente artigo... que concluo sugerindo-lhes um
teste.
* * *
Foi
Vieira, se não me engano, que afirmou ser "não" a palavra mais difícil
de se pronunciar. Sob certo ponto de vista, a observação me parece
verdadeira. E, por análoga razão, penso que a palavra mais fácil de se
pronunciar é "sim".
Por
isto mesmo, meu comentário sobre as afirmações do comandante do II
Exército é facílimo. Digo "sim" à sua tomada de posição lúcida e
oportuna face ao comunismo "religioso". E para fundamentar minha
atitude, basta que eu lembre duas passagens de seu discurso.
* * *
Examine o leitor este tópico: "Sentimos, como cristãos, que o comunismo
só será vitorioso com o fracasso e a derrota da cristandade. Ele é
ideologicamente o desafio desta. Assistimos, entretanto, estarrecidos e
atônitos, serem abaladas as inexpugnáveis fortalezas das nossas
tradições e fé, com as fortes investidas contra a Igreja de Jesus
Cristo, pelo condenável comportamento de parte de alguns sacerdotes
desobedientes ao trono de São Pedro".
Pergunto: quem, a não ser os comunistas e seus dedicados auxiliares, os
progressistas, sapos, avestruzes e congêneres, consegue negar a
evidência dos fatos enunciados pelo general? São eles tão óbvios, que
para os demonstrar basta o clamor público. Expressão mais palpável desse
clamor público não há — "scripta manent" — do que o abaixo-assinado
promovido pela TFP, em 1968, em que 1.600.368 brasileiros, entre os
quais ministros de Estado, altas patentes das Forças Armadas,
governadores de Estado, figuras de projeção no episcopado, da
magistratura, do Congresso Nacional, do mundo universitário e do
jornalismo, pediram a Paulo VI medidas para conter a infiltração
comunista na Igreja. De então para cá, a situação apenas piorou.
Mas,
objetará alguém, a infiltração comunista na Igreja é um fenômeno que se
passa na esfera religiosa. Terá feito bem em tratar dele quem está no
ápice de outra esfera, isto é, a militar? Nas palavras do general Souza
Mello é fácil encontrar a resposta. A ação subversiva de clérigos e
organismos católicos abala os próprios fundamentos do Estado, e,
enquanto tal, cai sob a alçada dos responsáveis pela segurança do País.
E
[passo] a outro trecho do discurso: "Convém lembrar que até mesmo dois
arcebispos, em 1968, segundo o noticiário da imprensa, preconizaram para
nossa Pátria a adoção de regime comunista do tipo existente na
Iugoslávia e na Tchecoslováquia."
A
afirmação é grave. Entende-se que só por respeito à dignidade episcopal,
o comandante do II Exército não mencionou os nomes dos dois prelados a
que alude. Mas ele deixa ver que, se alguém o contestar, ele tem à mão,
para os publicar, sem mais, os nomes. Atitude conforme tanto ao feitio
de espírito militar quanto ao preceito dado por Nosso Senhor: "seja a
vossa linguagem sim, sim; não, não" (S. Mateus, V,37).
* * *
Qual
a resposta do órgão oficial do Arcebispado? Nem sim, nem não: "talvez,
quiçá, conforme, entretanto" etc.
O
comunicado de "Ecclesia" é, ao mesmo tempo — e paradoxalmente — viscoso
e colérico. Ele insinua, por exemplo, — sem contudo afirmar — que há uma
misteriosa e maquiavélica urdidura de alguns tantos líderes, entre os
quais o governador Sodré, empenhada em difamar sistematicamente o
Episcopado Nacional, porque este promove a justiça social. O general
Souza Mello, com sua presente atitude, teria mostrado — sempre segundo o
comunicado — que faz parte da trama.
Poucas acusações poderiam ser mais injuriosas contra um governador e um
general, do que esta. Nela bem aparece a cólera de "Ecclesia". A
linguagem, entretanto, é viscosa: não dá provas, mas vislumbres, e evita
de entrar de rijo na demonstração.
Outro
ponto. O documento de "Ecclesia" rejeita desde logo, e sem mais exame,
as provas oferecidas pelo general. Asseverou este que sua acusação era
baseada em órgãos da imprensa. Redargue "Ecclesia": "É lamentável que
tal afirmativa (do general) se fundamente em noticiário da imprensa, e
não em melhores razões." E isto sem mais nem menos, como se nunca, e em
caso nenhum, pudesse provar qualquer coisa! — Não é fantástico?
Ademais, que provas quereria "Ecclesia"? As que se apurassem em um
inquérito policial? Mas como, perguntamos, se basta abrir um inquérito a
respeito de um bispo, para que logo a CNBB sai a público declarando que,
"a priorï", não admite a culpabilidade do bispo — como ela fez, há dias,
em favor do agitado prelado de Volta Redonda, d. Valdir Calheiros!
* * *
O
comunicado de "Ecclesia" tem um trecho precioso, pois deixa ver quais as
doutrinas que correm em certos meios católicos. Cito: "Para a Igreja, de
fato, o comunismo soviético, chinês, iugoslavo ou tcheco, continua sendo
filosoficamente ateu e mau, politicamente ditatorial e economicamente
discutível. Assim como o capitalismo, o neocapitalismo, também, é um
sistema materialista, gerador de inegáveis injustiças e diferenças entre
indivíduos e povos".
Atente bem o leitor. O comunismo, visto em seu aspecto filosófico, é
"ateu" e portanto "mau". Em seu aspecto político, é "ditatorial". E o
comunicado não diz se isto é bom ou mau. Visto, por fim, em seu aspecto
econômico, é "discutível". Ou seja, tanto se pode julgar que ele traz o
inferno quanto o paraíso na terra. Cada católico pense a respeito como
quiser.
Agora
pergunto: se um católico quisesse implantar no Brasil um regime
econômico no qual todos os meios de produção pertencessem ao Estado, tal
qual na Rússia, na China ou em Cuba — e se, ao mesmo tempo, ele
desejasse para a Igreja toda a liberdade de culto, tal regime seria
incompatível com a doutrina católica, segundo "Ecclesia"? —
Raciocinemos:
1) O
regime seria "ateu", no sentido de perseguir a religião? — Não. Logo,
não seria "mau";
2)
Seria ele "ditatorial"? — Digamos que sim. Por ser ditatorial, um regime
é necessariamente contrário à doutrina da Igreja? — Segundo o pe.
Comblin, por exemplo, não. Pois o que ele propôs, em seu tristemente
famoso documento, é uma ditadura populista. O que não impediu d. Helder
de o manter no corpo docente do Instituto Teológico de Recife. Cuba,
ademais, é uma escancarada ditadura. E não me consta que Fidel Castro
seja impopular nos meios da esquerda-católica. — Digamos que esse regime
comuno-católico não fosse ditatorial. Então pergunto se, do ponto de
vista político, contra ele teria "Ecclesia" uma objeção. Em sã lógica
não. Seria, por exemplo, um regime no estilo da famosa "república
conciliar", que alguns intelectuais e políticos da esquerda italiana
propugnam impunemente: uma república democrática, que executaria um
programa comunista, porém não cercearia a liberdade de culto. Para esta
forma de comunismo, não se vê que "Ecclesia" tenha objeções políticas.
3) E
quanto à abolição da propriedade privada? — É assunto econômico, e
portanto "discutível". Ou seja, do ponto de vista católico, não há —
segundo "Ecclesia" — objeção alguma contra a abolição da propriedade
individual...
* * *
Graças a Deus, sou católico, apostólico, romano. E em cada dia que vivo,
mais se me aprofunda a fé católica. Estudei bem os documentos
pontifícios e afirmo que este tópico do comunicado de "Ecclesia" é
contrário a doutrina tradicional dos Romanos Pontífices. Afirmo, ainda,
que esse mesmo tópico faz o jogo do comunismo. Pois, declarando lícita,
para os católicos, a aceitação da economia comunista, dá livre curso às
doutrinas comunistas entre os fiéis, e cria ambiente para que eles
colaborem na implantação de uma economia e de uma sociedade comunista.
Implantação por via eleitoral talvez, como se deu no Chile. Ou
implantação a ferro e fogo, como reclama o pe. Comblin.
De
onde se segue que no próprio comunicado de "Ecclesia" está a prova de
que é para a "república conciliar" comuno-católica, que a esquerda
católica empurra o Brasil.
A
conclusão é óbvia.
* * *
Leitor, faça uma experiência. Procure algum sacerdote, ou leigo
católico, hostil à TFP, e pergunte-lhe se estou com a verdade ao afirmar
que o comunismo, ainda quando apenas "econômico", é contrário à doutrina
da Igreja. Se ele for bem esperto, desconversará, dizendo que está muito
ocupado no momento, que responderá à sua pergunta depois etc. Se ele for
menos esperto, desconversará também, mas de modo inábil, isto é,
soltando uma torrente de imprecações contra a TFP. Se ele for bobo, dirá
que estou errado.
Neste
caso, peça-lhe que me escreva, interpelando-me com toda a energia, ou
desmentindo-me peremptoriamente.
Por
mim acho que, ainda que ele seja bobo, não o fará... e bem sabe por que.
Em
todo caso, faça uma experiência, leitor.